Millôr Fernandes certo dia escreveu naquela página dupla chamada Pif-Paf, que publicava na revista O Cruzeiro: "Se o hábito não faz o monge, fá-lo parecer de longe."
Impossível síntese melhor. Jamais esqueci. Se é verdade que um monge não se reduz ao hábito e nem é determinado por ele, o fato é que, vestido de monge, parece exatamente isso: um monge.
Pois amanheci pensando nisso, a falta de coisa melhor para pensar. Ainda dormindo em pé, enfiei os pés num par de chinelos muito macio e confortável e fui pelo apartamento em busca de um copo de água. Tomei a água e comecei a preparar meu café da manhã, uma das coisas mais deliciosas que se pode fazer na vida. Ferver água. Separar o filtro de papel. Retirar o café da geladeira. Colocar o pó no filtro com cuidado, na medida certa. Dispor a mesa, o queijo, o peito de peru, a manteiga. E assim fui, cabeceando de sono, compenetrado nessas tarefas matutinas como um monge que rezasse o breviário.
Sempre me lembro dos frades do internato do colégio Santo Antônio, em Blumenau, onde estudei até que me expulsassem por justa causa. Saíamos do dormitório ainda na madrugada, sonolentos, esbarrando uns nos outros, e íamos em direção ao refeitório. Mas era preciso esperar que as portas fossem abertas. Ficávamos no pátio. Uns se divertiam em dar cascudos nos outros, sendo que eu, pela sonolência talvez, olhava para um corredor externo que corria ao longo do segundo andar, onde ficava o convento.
Lá estavam os frades, indo e vindo, o nariz enfiado no breviário, o capuz marrom cobrindo suas cabeças. Era um espetáculo notável. Andavam lentamente, em passos regulares, e rezavam, embora não fosse possível ouvir suas vozes. Rezavam pelos pecados do mundo, pensava eu, ou pelos próprios pecados, pois já naquela época tinha comigo que monges e frades também acumulam um vasto repertório de pecados.
Hoje não sei se monges e frades rezam daquela maneira quando o dia ainda não se colocou de pé e o sol teima em ficar escondido. Mas aquele desfile piedoso era um autêntico espetáculo de fé; afinal, quem duvidaria da fé de um frade enfatiotado numa batina marrom e tendo sobre a cabeça um capuz solene?
Só interrompia a contemplação daquela andança mística dos frades quando as portas do refeitório se abriam com estrondo, manejadas por duas freirinhas pequeninas que eu veria nos filmes de Fellini anos depois. A trilha sonora era o barulho de xícaras e talheres. A fome vencia o estado de torpor e lá íamos tomar de assalto às mesas onde estavam os bules, as xícaras, as fatias de pão, a manteiga e algum doce, que lá em Blumenau chamam de chimia (do alemão schmier, graxa).
Confesso, para manter o clima religioso, que não era nada disso que eu queria escrever, mas vamos em frente. Queria falar dos chinelos. Esses que estou usando. Enquanto circulo de um lado para outro, arrumando a mesa e fazendo café, percebo que meu passo é curto, lerdo, cuidadoso, um tanto arrastado. Tudo bem, estou ainda sob os efeitos do sono. Mas os chinelos é que determinam o ritmo dos meus passos. Determinam também o modo como me preparo para tomar café. Criam um clima. Estou no meio de um ritual sagrado.
Vou ser mais explícito, pois os leitores, sobretudo se acabaram de abrir o jornal e ainda estão dormitando, terão dificuldade de me entender. Proponho o seguinte: imaginem um general, desses que usam coturnos e vão à guerra. Invadindo o Iraque, por exemplo. Imaginem se retirássemos os seus coturnos e, nos seus pés, colocássemos um confortável par de chinelos.
Fácil de entender. A fúria arrefeceria, os passos de ganso com que marcham desapareceriam junto com qualquer desejo de disparar um tiro. Quem vai disparar canhões com os pés enfiados em chinelos? Eis como, contrariando meu santo predileto, Millôr, podemos demonstrar que o hábito faz o monge.
Com chinelos, os exércitos desfilariam serenos como frades. É verdade que os frades não usavam chinelos, usavam sandálias franciscanas, mas dá no mesmo.
Por isso penso, nessa manhã preguiçosa, que deveríamos distribuir chinelos para uso diário e profissional de militares, executivos, políticos, urbanistas, engenheiros, professores, motoristas, jornalistas, escritores, policiais e cronistas. O mundo seria mais pacífico, menos sanguinário. Por conta dos chinelos.
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