Pois roubaram minha bicicleta.
Trata-se de uma magrela cheia de recursos, preta, reluzindo de nova, sem um arranhão, embora estivesse comigo há dois anos e meio, quando a recebi de presente de meu filho. O número do quadro, aviso a quem for comprar bicicleta de segunda mão, é 00069JF. Caloi. Nela andei pela metade de Curitiba, visitei bairros e praças, sempre pedalando em boa ordem e disciplina, sem incomodar ninguém e, no entanto, me roubaram a bicicleta.
Mas por que diabos me roubaram a bicicleta?
O portão eletrônico não fechou por completo. Chovia. Início de noite. Fazia muito frio. Só dei pela coisa às sete horas da manhã. Fiquei fulo da vida, saí a percorrer as redondezas, visitei algumas destas oficinas que vendem bicicletas usadas, jurando que, caso encontrasse o ladrão, o submeteria a fuzilamento sumário, embora sem saber com que armas. Seria um fuzilamento a socos e pontapés, talvez. Nunca se sabe o que pode fazer um tipo de quem roubaram a bicicleta.
Mas onde foi parar a minha bicicleta?
Não encontrei nem sinal dela. Sem ter o que fazer, registrei um BO na delegacia mais próxima. Inútil, é claro, como tudo que fazemos contra ladrões, pequenos ou grandes, de bicicletas ou não. Ingênuo, perguntei a quem me atendia se a polícia passaria aquela informação a policiais que estivessem de ronda pelo bairro. Fui olhado com terna piedade e me disseram que não, a gente só registra: BO número 2007/538615.
Mesmo assim, saí da delegacia um pouco mais tranqüilo, sabe Deus por qual razão. É o que nos resta neste mundinho atormentado, onde um sujeito não pode nem ter uma bicicleta de estimação, que a esta hora já se transformou em algumas pedrinhas de craque que servirão para que um pateta se imagine um super-homem fazendo papel de pateta. Claro. Há um receptador, me advertem. Sem ele não se rouba. Ele é o ladrão, me explicam. Ao menos neste caso se sabe quem é o ladrão, embora genericamente. O que também não resolve coisa alguma.
Quer dizer, nada a ver como filme Ladrões de bicicleta, do Vittorio de Sica. E não me senti Antonio Ricci, o pobre diabo que precisava da bicicleta para trabalhar colando cartazes pelas ruas de Roma. Não estou desempregado e não precisaria da bicicleta para arrumar uns trocados os poucos trocados que tenho me bastam. Era só para pedalar de um lado para outro, imaginando que ainda sou o mesmo garoto que ia à escola de bicicleta, atravessando metade da cidade de Blumenau e, ao final, subindo o morro do colégio D. Pedro II em zig-zag, o que hoje me cobraria os pulmões, senão um ataque cardíaco.
Assim, meu pobre drama nada tem da grandeza neo-realista de 1948, não serve para nenhuma apologia do proletariado e de seus sofrimentos, que no momento do roubo não me pareceram maiores nem mais dignos do que o meu. Além disso, o ladrão que a levou não terá sido movido por nenhuma necessidade nobre. Fumou a minha magrela. Transformou-a em fumaça. Como se vê, o mundo em 2007 é muito menos épico do que em 1948.
Seja como for, acho que eu e Antonio Ricci temos em comum exatamente isto. Perdemos a bicicleta não importa o que faríamos com ela, se somos proletários ou não, se ela representava ou não um instrumento de trabalho. O essencial é que eu e ele perdemos a bicicleta. Só quem perdeu uma bicicleta sabe o que isto significa. Penso agora que a perda em si é o tema do filme; o fato de que serviria para trabalhar não passou de firula neo-realista, penduricalho socialista. Hoje o De Sica teria que fazer um filme sobre isso, esta coisa bruta e sem grandeza: fui roubado, só. Gostaria de ver. Registra-se um BO e é tudo. Ela virou algumas baforadas de fumaça e duas folhas de papel que me foram dadas na delegacia, nas quais, talvez com alguma ironia da qual não me dei conta no momento, o escriturário registrou tratar-se de um "furto simples", feito na residência do declarante e que o meio empregado foi a "destreza".
E ainda tenho que agüentar mais esta: a destreza do ladrão!
Como fazia sentido o mundo em 1948!
Justiça do Trabalho desafia STF e manda aplicativos contratarem trabalhadores
Parlamento da Coreia do Sul tem tumulto após votação contra lei marcial decretada pelo presidente
Correios adotam “medidas urgentes” para evitar “insolvência” após prejuízo recorde
Milei divulga ranking que mostra peso argentino como “melhor moeda do mundo” e real como a pior
Deixe sua opinião