Teve vontade de aplaudir. Mas não aplaudiu.
Gostou da música, dos músicos, mas não aplaudiu. Ficou cheio de dúvidas: seria a hora certa de aplaudir? Não estaria se excedendo? Um aplauso mal calculado pode ser tão desastroso quanto um aplauso solitário entre dois movimentos de um concerto. E os outros, o que pensariam? Gostaram? Não gostaram? Perceberam que ele havia gostado? Pensariam o mesmo que ele? Mas o que ele pensava?
Respirou fundo, não aplaudiu.
Um dia aplaudira o improviso de um clarinetista com entusiasmo. Foi um aplauso solitário. Desejou sumir poltrona adentro.
Noutra ocasião, foi ao banheiro no intervalo de um espetáculo. Estava urinando ainda enlevado pela música de Gershwin, quando um sujeito estacionou no mictório ao lado e perguntou:
Então?
Ele, empolgado, disse:
Maravilha!
O outro não perdoou:
Que nada! Percebeu o violino? É fraco, o cara.
Atônito, mergulhou um olhar derrotado na parede branca. Terminou de urinar sentindo tremenda vergonha.
Chegou à conclusão de que deveria conter seus entusiasmos. Aplaudir com contenção, jamais puxar aplausos, jamais elogiar antes de ler ou ouvir, no dia seguinte, as opiniões dos especialistas. Lia um livro, esperava para saber o que Eustógio Masquerato escrevera a respeito naquele jornal paulista. Só depois saía dizendo se gostara ou não e, dependendo das pessoas com quem falava, não dizia nada, não revelava sua opinião, sequer soubera do lançamento do livro. Quando se tratava de música, aguardava o pronunciamento de Teobaldino Perquê, maestro e esperto em coisas populares e eruditas: sabia nomes, datas, quem era o primeiro violino daquele concerto em Paris, gravado no ano de... ele não era capaz de lembrar a data, menos ainda do nome do violinista.
Com o tempo, como se mantivesse calado e circunspeto, passou a ser respeitado no meio literário e musical. Tido como sujeito profundo e muito exigente. Não aplaudia à toa. Não se empolgava com pequenas proezas provincianas, não se derretia diante de qualquer texto. Passou a ser considerado o típico representante do público exigente da cidade em que morava.
Chegava ao teatro ou ao bar, sentava a um canto, ouvia calado, calado partia. Era acompanhado por olhares temerosos. O que estaria pensando, perguntavam-se, sendo que neste momento ele pensava no que estariam imaginando que ele pensava.
Durante anos suas opiniões, embora crescessem em importância perante o chamado público de espetáculos culturais, se resumiram a um silêncio solene. Comentava-se que achara isto ou aquilo, que dissera tal coisa a respeito de tal livro, que sofrera com tal instrumento tocando meio tom abaixo. Mas, apesar da fama alcançada, ninguém ouvira uma só opinião sair de seus lábios.
Passou o tempo e chegaram à cidade uns tipos novos, que não acompanharam a curva crescente de sua história e de seu prestígio, entre eles um sujeito magro e falador, despachado e risonho, extrovertido e alegre. Pois foi este tipo que, sem conhecer as regras de contenção, silêncio e cerimônia da cidade, cercou nosso personagem após um show de jazz e quis saber, afinal, o que ele pensara a respeito.
Foi um embaraço imenso. Ele estava acompanhado de dois amigos tão exigentes e contidos quanto ele. Olharam o atrevido com olhares cheios de dardos e seguiram em frente, ignorando-o.
Começou aí, dizem, a falência de seu prestígio. Já não bastava calar-se, já não bastava repetir as opiniões de Eustógio Masquerato e de Teobaldino Perquê. Nem era mais possível agir segundo o costume, fazendo de conta que certos músicos, atores, pintores, escritores, não existiam. O magrelo, por ser atrevido e desabusado, não o deixava em paz.
Até que um dia, num acesso de expansão afetiva, puxou aplausos para um jovem que estava estreando, filho de um amigo muito querido, a quem devia amizade e alguns avais bancários. Nem mesmo seus dois acompanhantes e discípulos, que ele mesmo treinara em mutismo crítico, o acompanharam nos aplausos.
Morreu de enfarto no mesmo instante. Certamente em êxtase estético, comentaram os jornais no dia seguinte, pois, como era sabido, ele era um homem de profundo conhecimento artístico, gosto refinado e um típico representante do público exigente de sua cidade.
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