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As comemorações do ano-novo no bar do cego Tião duram dias ou semanas. Neste ano, por fatos que serão narrados a seguir, ainda não terminaram. É verdade que no dia 3 de janeiro ninguém mais aguentava em pé, exceto o próprio cego Tião, como sempre perfilado atrás do balcão, preparando bebidas e servindo pratos variados, acompanhado de seu porrete disciplinador – com o qual coloca ordem no ambiente.

Mas, depois de terem bebido todas e devorado todos os vidros de rolmóps, as empadinhas de camarão e de palmito, os pastéis de carne e de vento, o boteco amanheceu lúgubre no dia 3. Alguns dormiam jogados sobre as mesas, outros sentados na escadinha de madeira que dá para a casinha que fica nos fundos do terreno. Foi diante desse cenário que o cego Tião, resolveu acabar com os festejos. Deu uma pancada violenta com o porrete sobre o balcão e soltou a voz de trovão:

– Vagabundagem, acabou a farra!

Logo o boteco estava deserto, sob protestos furiosos. As moças convidadas sumiram porta afora. Laurinho Telefone, abraçado à última garrafa de pinga, esbravejou que aquilo não era democracia. Carlão Borracheiro arrastou-se até a porta e caiu duro no meio da rua. Nelsinho Quero-quero, o consertador de bicicletas e meia esquerda do time da Vila, levantou-se do canto onde dormia jurando que jamais voltaria àquela espelunca. Mas errou a porta, saindo pelos fundos. Não se deu por achado e se trancou na casinha, de onde só foi tirado por Ritinha Neves, que surgiu esbaforida, muito necessitada do lugar.

Quando tudo se acalmou, cego Tião acendeu uma cigarrilha e, ao soltar a fumaceira, percebeu que algo estava errado. Deu um giro pelo boteco, farejando.

– Tem alguém aí! Acho o disgramado e lhe dou um porretaço!

Na última mesa, o cego sentiu que havia um vagabundo dormitando. O ressonar do indivíduo inundava o ar.

– Fidélio! gritou o cego, que conhece a vagabundagem pelo bafo.

Fidélio, é preciso explicar, vem a ser um ex-sacristão, um ex-pugilista, um ex-marinheiro e atual ex-sorveteiro, constando essa como sua última profissão conhecida. Enrodilhado sobre a mesa, roncava desassossegado. Acordou com um olho só, o esquerdo, examinou o cego e seu porrete prestes a cumprir o prometido, e declarou:

– Seguinte, Tião. Daqui não saio.

– Como não? E o porrete?

– Pode dar a porretada. Tá autorizado. Assino por escrito.

O cego duvidou:

– Tás no teu juízo certo? Pensas que não sou capaz de te dar uma porretada? Eu já avisei. A festa acabou, vagabundagem.

Fidélio abriu o olho direito, não sem antes fechar o esquerdo, e disse:

– Por isso mesmo, Tião. Acabou a festa. A gente bebeu todas, comeu de tudo e acabamos onde? Onde? – no que emendou, apocalíptico, braços abertos: Onde?!

Tião desentendeu:

– Que história de onde?

– E você pergunta? 2012, Tião! O ano do fim do mundo. Calendário Maia.

O cego respirou fundo:

– E daí?

– Pois se o mundo vai acabar, até lá não faço nada. Vou esperar pra ver. Se acabar, acabou. Se não acabar, vou pensar no assunto.

Uma voz gritou da janela:

– Apoiado, caro colega!

Era o doutor Asclépio Data Vênia, o causídico da Vila, que liderou a invasão do boteco com ímpetos de revolução francesa.

– Vamos continuar, decretou Laurinho Telefone. Chama as moças, acorda o Carlão lá na sarjeta, coloca mais bebida pra vagabundagem.

Feito um Luís XVI qualquer, apesar do porrete em punho, cego Tião voltou ao balcão na tarefa de servir cachaça e cerveja, além de salgadinhos e pastéis, sobras do dia 31.

Eis porque os festejos no boteco não terminaram. E devem continuar até o entardecer do dia anunciado pelos maias, 21 de dezembro de 2012. Se o mundo bater as botas, danou-se. Caso contrário, mais um motivo para continuar comemorando.

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