Hoje existe no local o esqueleto cinzento de um prédio inacabado, cercado por tapumes e ameaçado pelo mato. Está ali há anos, feio e sombrio, sem que seja concluído ou posto abaixo.
Quando eu era adolescente, numa Blumenau que não existe mais, ali ficava o Clube América, cujos bailes freqüentávamos em busca de namoradas muitas delas imaginárias e inatingíveis. Íamos conversar com amigos, beber cuba-libre ou uma mistura sinistra de conhaque com guaraná. E fumar os primeiros cigarros públicos. Os cotovelos no balcão, fazíamos ares cafajestes, olhares conquistadores, poses de James Dean de província.
Mas a antiga construção de madeira à beira do Rio Itajaí não me vem à memória por conta de amores perdidos ou gafes cometidas. Lembro daquele lugar como se fosse um cenário de filme B: as janelas generosas e o rio além dos vidros, o assoalho de tábuas largas, homens que usam chapéus, gravatas escuras e ternos de linho. Tudo tem um ar muito antigo.
No dia marcado em minha memória, fazia-se a contagem dos votos de uma eleição. As mesas, colocadas lado a lado, formavam uma imensa plataforma. Os escrutinadores estavam sentados nas mesmas cadeiras que disputávamos nos dias de baile. Diante deles, as urnas, pequenos caixotes de madeira escura. A atividade era muita. Abertas as urnas, os homens contavam os votos e faziam anotações enquanto alguém anunciava as contagens em voz alta.
Nós estamos, eu e um amigo, numa área junto à porta principal, um cercado delimitado por grossas cordas destinado ao "público", que somos nós. Acompanhamos a totalização dos votos que, de tempos em tempos, alguém escreve a giz num quadro negro dependurado na parede dos fundos.
Já nem lembro de que eleição se tratava. Talvez elegesse prefeito ou vereadores ou presidente da República. Sei que era uma eleição muito disputada e que os ânimos estavam exaltados.
Ao longo das mesas circulava um homem alto, magro, vestido com um rigor muito severo. O juiz de direito da cidade. Carrancudo, curvado pela própria austeridade, inspeciona o trabalho dos apuradores, resolve dúvidas, toma decisões. Vai de mesa em mesa, enquanto os trabalhos seguem.
A nosso lado, no cercado, há muita gente. Fazem contas, anotam os votos, calculam percentuais, discutem em voz baixa.
O clima de tensão cresce e, num certo momento, a interferência dos fiscais dos partidos torna-se turbulenta junto aos apuradores, as vozes se erguem, os homens discutem exaltados, um deles se coloca de pé e improvisa um discurso.
É quando o homem alto e magro se aproxima e pede silêncio. Eu o tinha visto algumas vezes, na rua, onde era apontado como uma sumidade jurídica e um tipo justo e reto, como se dizia. Uma celebridade municipal. Chamava-se, se não me falha a memória, Marcílio Medeiros.
A discussão aquietou, mas os ânimos continuaram exaltados. Minutos depois, desanda nova gritaria. Dois homens se erguem, um deles ameaça um soco, o outro arma os braços numa defesa de boxeador.
É quando o juiz retorna e se coloca entre os dois valentões, dando um berro que faz estremecer o madeirame combalido do velho América.
Respeito! Os senhores se comportem!
A meus olhos de apenas dezesseis anos, ele cresceu alguns centímetros e, embora com os braços largados junto ao corpo, parecia mais ameaçador do que os dois que antes erguiam os punhos.
Mais uma altercação destas e serão presos! gritou, encerrando o caso.
Acho que foi por isto que esqueci de que eleição se tratava. Afinal, as eleições se sucedem e passam, os eleitos também desaparecem com o tempo. Lembro apenas do juiz, de seus olhos furiosos, calando valentões e cabos eleitorais picaretas, e, na minha cabeça para sempre fantasista, me ocorreu que ali estava um belo papel para Henry Fonda: um personagem severo que acredita em valores mais importantes do que admitem os oportunistas de sempre.
Virou meu herói e fez com que o clube América hoje substituído por lamentáveis ruínas cinzentas me ficasse na memória não apenas por nossas desastrosas tentativas de imitar James Dean.
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