Ludovico nasceu após o ano mítico de 1975, quando nevou. Por isso não viu a neve.
Mas passou a infância e a adolescência ouvindo a família comentar a respeito da neve, aquela neve, aquele ano de 1975, todos cheios de felicidade, como se neve fosse a coisa mais deslumbrante do mundo.
Talvez sofresse de um trauma de infância, pois, quando bem menino, vivia se perguntando por que se falava tanto na neve. E também não sabia o que era aquilo, a neve.
Ah, quando a neve caiu! dizia o tio Apolônio. Parecia a Europa!
Ah, o quintal todo branquinho! sonhava a tia Bernadete.
Ah, o boneco de neve na capota do fuque! suspirava o primo Lafaiete.
Mas ele não conseguia entender o que era a neve. Imaginava uma chuva mais forte, meio leitosa. Às vezes pensava em pedaços de gelo despencando das nuvens. Era difícil entender o que era a neve.
Alguns anos depois, viu fotos, conversou com o primo Lafaiete, assistiu a uns filminhos fajutos na televisão. Pelotinhas brancas no céu. Conseguiu formar apenas uma imagem sofrível do que seria a tal da neve. Mas, quando montou a primeira banda de rock, se esqueceu do assunto e não mais sofreu com aqueles traumas. O que não impedia que lá uma vez ou outra, naqueles finais de domingo, quando o papo entre os membros da família definhava, que alguém exaltasse aquela neve de 1975. Ah, a neve! Ah, o boneco de neve do capô do fuque!
Ludovico, delicadamente pois é rapaz educado saía da sala e ia lá fora com a desculpa de fumar um cigarro. Caía fora.
Assim, Ludovico nasceu e cresceu sob o signo da neve, aquela de 1975.
Em julho passado, porém, levou um susto. Agora não ouviu apenas as exclamações de primos e tios. Agora eram previsões científicas do tempo. Haveria neve. Houve grande agitação na família, marcaram trocar telefonemas. Tia Lucrécia veio especialmente da Lapa para passar uns dias com eles. Ela não dormia há uns vinte e oito anos e se prontificou a ficar de plantão. Houvesse neve, telefonaria para todos os celulares da família, pouco importando a hora.
Ludovico odiava frio, era o que todos sabiam. Frio, repetia, era uma afronta, uma humilhação. Uma falta de respeito com o ser humano. Perguntou ao tio Apolônio qual seria a temperatura.
Coisa de zero e três graus. Você vai ver a neve, Ludovico!
Três graus era coisa impensável. Quando os termômetros desciam abaixo de 18 graus ele começava a bufar de ódio contra as frentes frias, que, vindas da Argentina, não poderiam ser boa coisa. Por isso, ao ouvir que a neve era para o dia seguinte, telefonou para Guiomar, sua namorada ocasional, juntou um cobertor, uma manta, um aquecedor elétrico, e rumou para o apartamento dela. Comprou vinho chinelo; argentino, jamais queijos e, de quebra, desligou o celular. Passou três dias trancado no apartamento da namorada, cortinas fechadas.
Quando retornou, foi recebido com agitada fúria. Onde andara?! E a neve? Vira a neve? Tia Lucrécia quase explodira o celular de tanto mandar mensagens!
Calma, gente. Vi a neve, sim. Branquinha, suave. Uma delícia.
Delícia? Ninguém entendeu.
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