Laurinho Telefone, o mais célebre dos poetas do boteco do cego Tião, é autor de proezas dignas de um Don Juan das Araucárias. Já foi perseguido pelas ruas da Vila por maridos em fúria, por credores armados com pistola e, sobretudo, por algumas de suas incontáveis ex-mulheres.
E nada disso o assusta. Porém há sempre um porém, como sabemos Laurinho tem um medo do qual não consegue se livrar: avião. Até poucas semanas, era um segredo de estado sobre o qual nunca se ouvira falar. Ocorre que na Vila, mais dia menos dia, tudo se sabe e foi o que aconteceu. De tanto inventar mentiras para evitar viagens, Laurinho acabou desmascarado e a Vila descobriu que ele, tão destemido, teme, como gosta de dizer, "aquele charuto de lata abarrotado de querosene".
O poeta virou motivo de chacota. Colocaram avisos moleques nos postes da redondeza e um trovador, seu concorrente na disputa das musas, fez uns versinhos onde debocha do sujeito que, vivendo sempre tão alto, teme voar.
Avião é seguro provoca o causídico da Vila, Dr. Pâmphilo Data Vênia Pode ficar descansado: avião não cai!
Laurinho, antes de virar mais uma dose, fulminou o doutor:
O problema não é cair. O problema é que ele voa!
Pronto, estava feita a polêmica. Os dois, mais Carlão Borracheiro e Paulinho Ventura, passaram o resto da noite, sob o olhar entediado do cego Tião, a discutir questões de voo e de pouso, de alturas e querosene. E nada se concluiu.
Mas, sob tamanha pressão, Laurinho resolveu dar um basta no drama. Passou várias tardes no Afonso Pena, depois de um estágio observando aviões menores descendo e subindo no Bacacheri. Andou pelas livrarias, onde é conhecido por comprar apenas livros de poesia coisa que ninguém faz, nem mesmo poetas consagrados e recolheu livros de autoajuda para vencer o medo de voar. Antes disso, leu tudo que foi possível encontrar na internet, via Google, o senhor de todos os saberes, a respeito de voos e medos de. Trancou-se em casa, na companhia de algumas garrafas de vinho, e fez uma verdadeira pós-graduação em medos de, acidentes em, voos para, estatísticas sobre.
Foi um choque. Dias depois, já dissertava com autoridade no boteco sobre a segurança nos voos. Existem dois ou três sistemas de controle das aeronaves, sabiam? Ninguém sabia. E explicou, com ares de especialista:
É avião quando está no chão. Aeronave quando está voando. Sabiam?
Não, não sabiam. E a falação continuava:
Segundo estatísticas, o avião é o meio de transporte mais seguro de todos, tirando o trem. É, o trem. Mas de trem, dizia ele, não se vai a lugar algum, nem mesmo até à Vila Capanema. Ocorre que nesse momento estão no ar 450 mil aeronaves e os acidentes só acontecem na proporção de um para cada um milhão de voos.
E Laurinho mergulhou em distinções de natureza epistemológica:
Medo de voar é uma coisa. Fobia é outra. Quem tem medo, voa mesmo assim. Quem tem fobia nem entra em avião.
Foi um espanto na academia literária do boteco. E Laurinho seguia, esgrimindo dados e novas doses de pinga:
60% das pessoas têm medo de voar e acrescentou, após um breque cheio de suspense: Os outros quarenta por cento mentem.
Gargalhada geral. O homem estava curado, comemorou o doutor Pâmphilo.
Antes de se debruçar sobre a mesa e adormecer profundamente, Laurinho concluiu dizendo que indo de carro para o aeroporto há uma chance quinhentas vezes maior de acidente do que voando. Andar de bicicleta é mais perigoso. Até mesmo caminhar ou subir escadas é mais perigoso. Os acidentes domésticos matam mais. E, antes de começar a ressonar, arrematou: é o que dizem as estatísticas.
No dia seguinte, porém, passado o porre, a Vila descobriu que Laurinho, não apenas não perdera o medo de voar, como passara a se atormentar com novos medos, todos apoiados em estatísticas. Largou o carro na garagem, frequenta apenas o térreo da boate de Ritinha Veludo, evitando subir escadas, e, por dois trocados, vendeu a bicicleta. E só caminha de mansinho.