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Na infância, nas proximidades do rio, formava-se a neblina.

A grande aventura – e o grande medo – era atravessar a ponte de ferro caminhando sobre os dormentes dos trilhos do trem. Lá em baixo, o abismo das águas. Sobre elas, a massa cinza, um algodão ameaçador e gelado. Eu me perguntava se o rio era uma invenção da neblina. Imaginava de que forma ela, a neblina, sabia onde estavam os rios para se colocar acima deles, acompanhar seu traçado, obrigando suas águas a rolarem mais lentas e silenciosas.

Observava a neblina alterando o tempo e o espaço. Sob neblina, o mundo avança a passos lentos. O tempo se desdobra cheio de cuidados, com pudor de revelar de uma só vez os contornos do mundo –, não pelo efeito visual, que é óbvio, mas por uma alteração daquilo que chamamos de tempo. O rio detém suas águas e os pássaros voam lentos, sustentando asas abertas, mais amplas do que de costume, sustentadas na neblina. Também achava que os pássaros, ao atravessar a neblina, não precisavam bater as asas. Na verdade, posso garantir, nunca vi um pássaro bater as asas na neblina. O ar se torna mais denso e os pássaros apenas deslizam de um lado para outro, em silêncio.

Também me intrigava o que há de esquivo na neblina. Lá está ela a dez ou vinte metros de distância e, sabendo que nos aproximamos, se afasta aos poucos, dissimulada. Como chegar onde está a neblina? eu queria saber. Acelerava o passo na tentativa de alcançá-la. Era inútil. Ela se afastava sempre. Vencia sempre.

Depois fui descobrir que a neblina estava também a minha volta. Eu não a via, mas ela estaria ali, pois alguém me disse que me vira surgir, como um fantasma, do meio da neblina. Olhava a árvore debruçada à beira do rio e pensava que ela, se me visse, também me veria assim: alguma coisa esfumaçada e incerta, que poderia ser ou não ser um menino indo para a escola. A neblina não apenas acompanhava os rios. Desdobrava-se em outros novelos de algodão e ia inventando novos espaços, na medida em que eu caminhava. Como se a nuvem acompanhasse meus passos. Lá íamos nós, eu e a neblina. Eu tentando alcançá-la, ela se esquivando sempre, escondendo-se de mim. Um jogo sem fim.

Mais tarde, é claro, as coisas mudaram. Vim a saber, infelizmente, que a neblina não escolhe os rios e nem os persegue com seu manto de nuvem, mas que há uma explicação cientifica para a sua formação. Foi o que me explicou um professor de geografia. Explicou também que ela não surgia apenas junto aos rios. Surgia em vários lugares, alguns prosaicos, um quintal, um pátio de estacionamento. A partir deste dia, para sempre detestei professores de geografia.

Fui cuidar da vida, arranjar emprego, ganhar meus trocados, e já não tive mais tempo para perseguir neblina. A verdade é que muitas vezes reclamei dela, sobretudo quando me cercava numa estrada, no topo de alguma serra - lá ia eu pilotando um destemido fuque meia-sete, com seus faróis de 6 volts, lerdos e cegos. Por quilômetros, amaldiçoava a neblina, perseguindo a estrada com olhos grudados ao tracejado branco desenhado na lateral do asfalto – quando havia um tracejado branco desenhado e quando havia asfalto. As viagens ficaram mais longas e lentas, mais perigosas. Já não via motivos para me encantar com a neblina. Precisava ir de um lugar para outro, chegar em tal horário, atender compromissos, aquela neblina só me aborrecia. Preso aos meus trabalhos e aos meus dias, amaldiçoava aquela nuvem que insistia em me perseguir nas horas e lugares mais impróprios. Voltava para casa, tarde da noite, exausto, e lá estava ela me esperando com seu arsenal de fantasmas liquefeitos, sobre a ponte.

Atarefado como estava, conclui que a neblina era coisa de poetas, de lunáticos, de quem não tem o que fazer. Melhor viver sem ela.

Anos depois, farto de trabalheiras, mandei tudo ao diabo e sai a caminhar. Súbito, me vi em meio a uma neblina invencível. Lá estava eu no meio dela, que se fechava sobre mim e fazia com que meus passos ecoassem longe, como se fossem os passos de um outro. Avancei com cuidado, mergulhado num tempo que não fluía, num espaço que se fazia a cada movimento meu. Existiria o lugar onde eu ia colocar os pés? Ou eles emergiam do nada a cada passo que eu dava?

Era, afinal, o tempo e o espaço que eu conheci quando menino.

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