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O jornalista Cândido Bisbilhota tocou a campainha e aguardou. Como se o esperasse por detrás da porta, de imediato surgiu um sujeito bem vestido – terno azul, gravata amarela – sapatos luminosos, cabelos penteados com rigor geométrico.

– Cândido Bisbilhota, apresentou-se candidamente o jornalista Bisbilhota.

– Claro, claro, fez o homem, afetando educação refinada e algum tédio.

– Trata-se da entrevista...

– Estou sabendo. Normal...

– Isso mesmo – Bisbilhota sorriu – Gostaria de entrevistá-lo para saber como é ser um homem normal. O título que o senhor acaba de receber...

– Absolutamente normal, diga-se, obtemperou o homem.

Bisbilhota pensou: só um homem absolutamente normal é capaz de obtemperar.

– A sua biografia...

– Absolutamente normal. Fui uma criança que jamais fez xixi na cama depois que meus pais me explicaram que isso era feio. Nunca reprovei na escola, nunca ofendi professores, jamais cuspi em calçadas. Fiz um curso universitário brilhante e fiquei rico só com o produto do meu trabalho. Casei com minha primeira namorada. Virgem. Virgens, aliás. Tanto eu quanto ela, note-se, embora eu seja de Escorpião...

Nesse ponto o homem normal colocou a mão sobre os lábios e deu uma risota pudica, deliciado com a piadinha que havia feito.

Bisbilhota aproveitou para perguntar:

– E seus prêmios?

– São muitos, incontáveis. Vamos nos limitar àqueles que me deram mais alegria. Adolescente Educado em 1980. Rapaz Normal do Ano de 1982. Marido Notável em 1996, concedido pela Fundação Don Juan, de Madrid. Ah, tantos prêmios! Até me encabulo. Agora, esse Homem Normal do Ano 2010.

– O que para o senhor parece normal, imagino.

– Muito normal. Veja. Uso cinto de segurança até dentro da garagem aqui de casa. Nunca levei multa no trânsito. Jamais disse um palavrão. Ao falar ou escrever obedeço à norma culta. Adotei a nova ortografia com ardor e não erro um só hífen! Não conto anedotas – nesse momento o homem teve um tremelique e coçou com alguma fúria o olho direito– que se­­jam politicamente incorretas. Aliás, sou rigorosamente a favor do politicamente correto. Não fumo, é claro, o que faz com que me sinta muito superior aos fumantes. O que é normal, convenhamos.

– E sua fortuna?

– Normal. Fiquei rico à custa de meu trabalho...

– O senhor já disse isso. O que, convenhamos, não é muito normal, beliscou Bisbilhota.

– Ocorre que sou um competente cultivador da arte de influenciar amigos e fazer pessoas...

– Influenciar pessoas e fazer amigos... – Bisbilhota corrigiu

– Ou isso. A ordem dos produtos não altera os fatores.

Nesse ponto o Homem Normal voltou a coçar os olhos com fúria e Bisbilhota, preocupado, perguntou:

– Está se sentindo bem?

– Normal, normal. Um pouco confuso, só isso. Esse prêmio... sabe como é. Mas tenho saúde de ferro. Física e psicológica. Sou um homem hígido.

– Estou vendo.

– Está mesmo? – o Homem normal pareceu angustiado – Depois desse prêmio, compreende? Preciso tomar um cuidado enorme. Não posso me descuidar. Um errinho... lá se vai meu prestígio.

– É muito difícil ser normal? – perguntou Bisbilhota, o cândido.

– Muito. Dificílimo! Quase insuportável. O que é normal.

Foi quando o Homem Normal coçou seus olhos com fúria anormal, até que uma gota de sangue pingou em sua imaculada gravata amarela.

– Está vendo? disse ele, diante do espanto de Cândido Bisbilhota: Demasiado normal.

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