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Tremembo Kees, o anarquista de plantão aqui do bairro, com sua fúria crítica e irreverência sem limites, anda sumido e sofreu golpes em seu prestígio. Dizem que baixou a guarda e que já não bate nos poderosos com a mesma gana de sempre.

Muitos lembram de suas investidas contra um ex-presidente que alcunhou de Baronete da Vila Madalena. Ou de suas chacotas contra o atual, cujas besteiras Tremembo costumava criticar. Com o tempo, as besteiras aumentaram de tal forma que Tremembo cansou.

Anda quieto, portanto. Aban­donou os discursos que fazia na praça, aos domingos, quando a turma voltava da missa. Já não polemiza no bar do cego Tião, onde costumava discursar do alto de uma cadeira, provocando aplausos e iras com suas tiradas.

Como se sabe, Tremembo não bebe. E não se trata de uma questão religiosa ou ideológica. Trata-se de um princípio. E o princípio é o seguinte:

– Quem precisa de álcool para ficar bêbado, carece de imaginação.

Homem de generosa imaginação, não precisa de álcool para estar duas doses acima do resto da humanidade e entrar em sintonia fina com as leis do universo.

Quando indagado sobre sua ausência na seara política, diz:

– Não está acontecendo nada, meu caro. O nível anda tão baixo que logo estaremos considerando qualquer síndico um estadista. O Brasil emburrou mais do que o planejado. Quem dominar um vocabulário de quarenta palavras, será declarado o intelectual do ano e caçado com bordunas. A burrice triunfará! Quem devolver para uma velhinha a moeda que ela deixou cair na rua, será considerado beato. Em dois meses, virará santo. E irá para fogueira. A imoralidade está à solta!

Como se vê, Tremembo Kees continua o mesmo. A fúria é a mesma, a indignação também. Só não gasta energia com gatuno miúdo, diz. Já não dá tiro para o alto. E se dedica a campanhas diretas, objetivas.

Por exemplo. Reuniu alguns vizinhos para contar os buracos existentes no asfalto das ruas do bairro.

Começaram examinando as ruas que circundam a praça Ivan Ferreira do Amaral e, depois, espalharam-se pelas redondezas. Me­­diram, anotaram o diâmetro, a forma e a profundidade dos buracos, e lascaram os dados numa planilha. Ao final do dia, o resultado foi colado em postes e no boteco do cego Tião.

O resumo: as ruas do bairro estão em decadência. A superfície esburacada já suplanta aquela coberta pelo asfalto, que não passa de um mosaico de remendos, fragmentado em pequenos blocos de alguns centímetros quadrados, num efeito que Tremembo apelidou de "petro-celulite". Aqui e ali, o asfalto libera pedrinhas que os automóveis respingam nos passantes. Em diversas ruas Tremem­bo Kees encontrou o que chama de falência senil do asfalto. Aqui existem calombos e ondulações, ali há depressões onde se formam lagoas em dias de chuva – e chuva é o que não tem faltado. Além disso, o anarquista, que se recusa a andar de carro, viaja pelo bairro trepidando numa bicicleta.

Como se vê, já não gasta tempo com ideologias ou esperanças po­­líticas. Tornou-se um homem prático. Faz levantamentos objetivos e pede ações concretas. Solicita apenas que a prefeitura não promova, a exemplo do presidente "deste país", uma operação tapa-buraco. Quando é feita, se desfaz em dois meses.

Outra campanha de Tremembo é contra a iluminação do bairro. As luzes nos postes são amarelas, pálidas, os assaltantes adoram. Sair por essas ruas à noite equivale a freqüentar um filme noir dos anos 1950. Mas, para se ver que é impossível agradar a todos, quando Tremembo foi coletar assinaturas para um protesto contra a pobre luz que nos cabe, dona Marcinha Flores, uma velhinha simpática e corcunda, de seus oitenta e tantos anos, que mora em modesta casinha de madeira, se recusou a assinar. Explica-se: há seis décadas esta gentil senhora era uma daquelas moças que agitavam as noites da boate Quatro Bicos. Quando Tremembo perguntou a razão de sua recusa, ela piscou um olhinho maroto e disse:

– Esta iluminação fraquinha me dá uma saudade...

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