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Nunca estive no Líbano.

Desconfio – e é quase uma certeza – que jamais irei ao Líbano.

O Líbano fica longe, do outro lado do mundo, e para chegar lá é preciso atravessar mares, terras, voar quilômetros intermináveis. Quando examino o mapa-múndi, tenho alguma dificuldade em encontrar o Líbano. Estará por ali, entre uma série de países, uns menores, outros maiores, numa colcha de retalhos geográficos cujo sentido não entendo direito. Nem sei ao certo com que cores os geógrafos costumam preencher o mapa do Líbano, qual o desenho de sua bandeira, e tenho dificuldade em imaginar como soa, entre eles, a língua que falam.

Pela geografia e por minha incurável ignorância, o Líbano é um país distante.

Sei pelos jornais que está metido numa guerra. Bombas, explosões, mortos, o cenário conhecido. Preciso me concentrar para descobrir se por lá viceja a mesma guerra de sempre ou se inventaram outra guerra. Uma guerra nova em folha, quem sabe, tinindo feito automóvel zero quilômetro. Ou será a velha guerra de sempre? Leio o jornal com tédio e cuidado, mas não chego a nenhuma conclusão. Trata-se de guerra. Um prédio desmoronado entorta a página do jornal, que parece se debruçar sobre a mesa do café da manhã. Um menino morreu, diz a manchete, com o alarde e a frieza cirúrgica das manchetes. Não é o primeiro a morrer. É o terceiro entre meninos brasileiros.

Na verdade eu já havia lido a manchete ao pegar o jornal. Mas fingi não prestar atenção. Liguei a cafeteira, coloquei o pão sobre a mesa, apanhei uma fruta.

Foi a fruta que me atingiu em cheio, como um explosivo.

Nesta mesma cozinha na qual estou tomando meu quieto café da manhã, insatisfeito com este jornal e as coisas que diz, conversei um dia, longamente, com meu amigo Antônio Medawar. Ou, como ele preferia, com um traço de galhofa, Antoine El Medawar.

Olho na direção da pia e o vejo encostado na quina do fogão, saboreando uma maçã. Já falou, já xingou meio mundo, já ocupou esta visita que me faz com todos os seus truques. Agora come a maçã como uma criança come chocolate.

Tem oitenta e tantos anos e uma vitalidade que parece não caber em seu corpo. Irá morrer dentro de um ano e meio, mas disto nem eu nem ele sabemos ainda. Neste momento, o que interessa é a maçã. Ele a come com uma concentração religiosa e só interrompe aquele momento místico para me dizer que não entende como nós, brasileiros, conseguimos comer frutas que não estejam geladas.

Não estava reclamando da maçã que eu lhe dera – era um homem que sabia ser educadíssimo. Estava pensando em alguma coisa que iria me contar em seguida. Mordeu novamente a maçã e me disse, com lágrimas nos olhos, que lembrava do Líbano.

Ele era um menino no Líbano, há quase oitenta anos, talvez um menino de olhos acesos como este da foto do jornal. O grande prazer daquele menino era, dia cedinho, ir ao pomar e apanhar uma fruta. Fazia frio, às vezes muito frio – ele apanhava a fruta gelada, que queimava sua mão, e voltava para casa. Sentado num banquinho de madeira de três pés – não era nenhuma obra de artesanato, era apenas um banco com um dos quatro pés quebrado, me explicou, sorrindo – ele se concentrava em comer a fruta.

Era daquela fruta gelada que ele lembrava agora.

– Como era bom comer aquela fruta gelada, me diz ele, olhos fechados, mastigando a maçã.

E, quase oitenta anos depois, aqui nesta cozinha, ele me olhava com um jeito de menino moleque que roubou a fruta no quintal do vizinho.

Era o Líbano do meu amigo Antoine el Medawar. Não voltamos – não sabíamos que ele iria morrer, é claro – a conversar sobre as frutas geladas que um menino havia comido e seu delicioso sabor nas madrugadas do Líbano.

Hoje, aqui nesta cozinha onde ele esteve um dia, olho para o vazio que deixou ali em frente da pia, e não vejo mais meu amigo libanês, que esgrimia teorias não apenas a respeito da relação entre o gelo e as frutas, mas sobre todos as demais aventuras humanas, reais ou imaginadas.

Volto ao jornal e me espanto com os olhos acesos e intensos na foto do menino que foi morto ontem no Líbano.

O que este menino poderia contar a alguém dentro de uns oitenta anos?

Jamais saberemos.

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