Para sermos dramáticos, poderíamos dizer que escrever é enfrentar um abismo.
Insisto que a frase acima me veio assim, do nada e sem controle, como costumam vir os abismos. Não pensava nela, não pensava em nada, e ela surgiu por conta própria.
Mas por que abismo? Não será uma banalidade tal frase?
No tempo das máquinas de escrever, o abismo era a folha em branco. Diante dela, o pânico. Hoje, o papel só aparece mais tarde, quando imaginamos que tudo está escrito. Ao escrever, estamos diante de uma tela em branco, que brilha e cansa os olhos e fere a alma.
Quando havia o papel e as coisas não iam bem, havia o recurso de rasgar dramaticamente a folha, jogá-la no lixo, pois, ao contrário do que se esperava, só se escrevera banalidades. O gesto dramático já não é possível. Se o que escrevemos nos parece banal, podemos apagar tudo acionando uma só tecla neutra e fria. É pouco para liberar a frustração que nos assalta.
Mas nem tudo é desastre. Na tela em branco podemos reescrever sem fim, corrigir sem deixar traços. Lá pelos meados dos anos 1990, recebi uma revista acadêmica editada por professores de literatura. Lá estavam ensaios cheios de sapiência a respeito de como estudar as sucessivas versões de um texto literário. Como o escritor começou, por onde prosseguiu ou se perdeu, o que emendou, cortou, reescreveu. Eu mesmo, nos tempos da datilografia, inventei a teoria do lápis assassino. Tratava-se do seguinte: uma vez escrita a primeira versão, vinha a etapa do lápis assassino. Vermelho. Cortar sem piedade. Suprimir o acessório, o excesso, o que ficou torto na página e desafinou. Pois os doutos acadêmicos imaginaram várias estratégias para o estudo das etapas de um escrito, que seria um palimpsesto formado por folhas de papiro reutilizadas sobre as quais os escribas escreviam, apagavam, escreviam de novo, acumulando camadas de texto.
Com o advento do computador tais acadêmicos ficaram sem ter o que fazer. Os textos anteriores deixaram de existir. Ou melhor, refugiaram-se numa existência virtual, na memória do escritor, que no entanto os rejeitou, e na memória do micro, em algum backup que sumirá a cada gravação. Já não é possível, como o era diante de um original de Graciliano Ramos, perseguir os caminhos e as hesitações do escritor.
Na época me ocorreu que aquele exercício acadêmico seria inútil, pois a única coisa que importa é o último texto, nada mais. O resto se perde para sempre, volatilizado, verbo adequado àquilo que hoje existe em forma de bites. Basta a seleção de um trecho e um golpe na tecla delete para que tudo se desfaça.
Mas não será melhor assim? De que servem as versões anteriores de um texto além de permitir exercícios acadêmicos que, afinal, não levam a nada, como tantos exercícios acadêmicos. Afinal, o que interessa é o texto editado, publicado de alguma forma ou entregue a alguém, em qualquer meio, para ser lido. Aquele é o texto, o resto não importa. Foi deletado.
Aliás, muito se falou a respeito desta palavrinha que dizem vinda do inglês, mas que tem raízes latinas. Certa ocasião, um revisor insistiu comigo que não havia tradução para ela. Pois há. A tradução é simplesmente apagar. Mas, com o predomínio da língua inglesa através da informática, ela nos pareceu mais sintética e exata. Pegou. Havíamos esquecido que em português existe delir, verbinho deixado ao abandono por todos nós, mas que significa o mesmo apagar tendo a mesma raiz de delete e do já aportuguesado deletar.
Pois agora, diante da claridade cruel da tela do notebook, temos o abismo. Uma espécie de não-texto. O nada. Mas não é isso que nos causa pavor. O pavor existe até o segundo anterior à primeira palavra que colocamos na tela. Sabemos que, uma vez escrita, já não há o que fazer. Teremos que seguir em busca da última palavra ou estaremos perdidos.
O diabo é que nunca sabemos que palavra colocar naquele vazio. Eis o abismo: poderemos fracassar. Jamais chegaremos a esta palavra. Descobriremos que não é a palavra perfeita. Será uma palavra qualquer, convertendo o que foi escrito em um texto banal, não naquele que compensaria a solidão desta noite de quarta-feira gasta diante de um teclado e de uma tela.
Sim, é quarta-feira, mas poderia ser outro dia qualquer. Um dia no qual, mantendo o exagerado ímpeto dramático, enfrentamos o nada: a claridade da tela que nos coloca à beira do abismo.
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