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Ela sentou na poltrona com as pernas – magrinhas, joelhos pontudos – bem unidas. Abriu a caderneta, fingiu anotar alguma coisa, tentou pensar. Afinal, suspirou:

– Sabe, não gostei do seu livro.

Ele, que não aprende nunca, se surpreendeu:

– Não? Por quê?

– Não sei. É que não acontece nada...

– Nada?

– É. O personagem vai mudando, pensando, lembrando, mas nada acontece. Quis escrever assim mesmo?

Ele respira fundo:

– Dizem que um dia o Niemeyer levou um grupo de senhoras para conhecer Brasília. Elas acharam tudo muito monótono, prédios quadrados, paredes brancas, ruas retas. Uma delas perguntou: por que o senhor fez tudo assim igual, tudo branco, tudo cinzento? Sabe o que ele respondeu? Só pra chatear, minha senhora.

Olhos perdidos de susto, ela se debruça sobre a caderneta e rabisca nervosamente. Quando ataca com nova pergunta – lida na caderneta? –, está com a testa coberta de suor.

– Tudo isto aconteceu mesmo? Estas histórias são reais? É autobiografia, não é?

Ele se enche de paciência e de espírito cristão e explica que autobiografia é um gênero tecnicamente rigoroso, baseado em dados, datas e documentos. Seu livro é um romance. Não é importante se aqueles fatos aconteceram ou não.

– Como não? – empunha o lápis na vertical.

– Veja bem, de que modo você poderia saber se algo narrado aí aconteceu ou não?

– Perguntando ao senhor, ora!

– E quem garante que eu vou dizer a verdade? Quem garante que eu escrevi a verdade? Já leu Garcia Márquez?

Balança a cabeça afirmativamente, mas não abre a boca. Não leu.

– Pois, ele diz que tudo aquilo que escreveu sobre Macondo foi contado – e inventado – pela avó dele. O problema nosso – e a vantagem dele – é que não conhecemos a avó dele.

Ela pára o lápis no ar, aproxima-o da boca aberta. Se morder o lápis, pensa ele, mando sair imediatamente. Ela não morde o lápis. Ele desiste de perguntar se entendeu.

– Há muita coisa aqui – ela aponta o livro, que repousa no sofá, indefeso – que parece ser da sua vida.

– Claro. De mistura com outro tanto que inventei. Ficcionista costuma ser delirante e mentiroso. Em qualquer caso, você não pode saber o que de fato aconteceu e o que é invenção. Aliás, este é o tema.

Assusta-se, separa e junta os joelhos bruscamente:

– Tema? Do quê?

– Do romance. O tema não é o que aconteceu, mas a memória, que é feita de coisas que lembramos, de coisas que nos contaram, de coisas que inventamos, que imaginamos, de nossos delírios e fantasias. Ou seja, os dados da memória não são objetivos. São, na maior parte, inventados. Jamais saberemos. O importante é como as lembranças, falsas ou verdadeiras, existem para nós. A objetividade é uma tolice.

– Mas o personagem é o senhor...

– De modo algum. O personagem nunca é o escritor. O Paulo Leminski, aquele polaco – você deve conhecer ao menos a pedreira, não é? –, escreveu certa ocasião que, quando um autor escreve a palavra eu, já está mentindo. A primeira pessoa é mentirosa. Aliás, o autor não existe. Não tem a menor importância. Só importa a avó do Garcia Márquez, compreende?

– O senhor está brincando.

– Nunca falei tão sério na vida.

Quando ele abre o jornal no domingo seguinte, lá está a matéria que resultou dos rabiscos depositados na caderneta. Debaixo da foto do seu livro, a vingança feroz e pequenina sob forma de legenda: embora o autor negue, seu romance é autobiográfico.

Ele, que não aprende nunca, jura que dará a próxima entrevista armado.

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