Vinicius de Moraes (em outubro fará 101 anos, vivíssimo) me parece a mais completa encarnação do que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "homem cordial".
Devo me explicar. Essa expressão homem cordial foi mal interpretada por brasileiros que não se deram ao trabalho de ler Raízes do Brasil, livro magistral. Quem não lê os textos-fonte de sua cultura pega os conceitos pelas beiradas, dependurado em citações capengas.
Assim, ao contrário do que é usual em rádios, jornais, academias etc. Sérgio Buarque jamais disse que o brasileiro é pacífico, tranquilo, paciente ou bonzinho. Desenvolveu com muita propriedade a tese de que o brasileiro é uma criatura que se orienta pelo coração. Afinal, cordial vem de cor-cordis, coração em latim.
Outros povos se orientam pela razão, pela experiência empírica, por costumes ou dogmas religiosos ancestrais. Os alemães buscam razões para fundamentar seus atos e pensamentos enquanto os ingleses e norte-americanos se apoiam em dados empíricos para pensar e agir. Já os brasileiros agem de forma afetiva, dizia Sérgio Buarque. Muitas vezes levados por impulsos. Podem ser muito afetivos e carinhosos em expressões e gestos, mas, como qualquer povo, podem ser violentos, injustos, tirânicos. Os leitores pensem em episódios como Canudos, nas degolas durante a Revolução Federalista, na sucessão de ditaduras pelas quais fomos assolados e na violência urbana atual.
Ser cordial não significa ser bonzinho, mas colocar o coração acima da razão, dando-lhe um valor superior nas decisões o que pode eclipsar a razão ou a experiência.
Isso é frequente na mídia. Dia desses assisti a uma remexida e bela moçoila falando da peça de teatro da qual participa. Fiquei sabendo de cólicas na estreia, de friozinhos na barriga antes de colocar o pé no palco, do ambiente de amor que uniu o elenco, da emoção do público, do carinho com que o diretor tratou todos.
E não ouvi uma só palavra sobre a peça, o texto da peça, seu valor literário e dramatúrgico, o autor, suas obras e sua época, o sentido e as reflexões que provoca. A moçoila e o entrevistador estacionaram nas "emoções".
É o homem cordial recusando-se a pensar.
Muitos pensarão que estou criticando Vinicius. Não. Ele é o homem cordial na sua face positiva e criativa, que fez da cordialidade instrumento de saber e conhecimento forma de dar sabor à vida.
Lembro-me do delicioso "Poema enjoadinho":
"Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?"
Uma maravilha de concretude, de um saber e sabor que é tátil, olfativo, auditivo, gustativo, visual. O homem cordial usa desses meios para construir seu universo. As razões são afetivas. Mas não são ilusões melosas ou "emoções". Trata-se de uma sabedoria do sensível.
É baseado em Vinicius que desejo que os brasileiros venham a usar seu coração como ele o fazia. Não como fuga ao pensamento, mas como base de um modo de ver e sentir o mundo que supere fundamentalismos primitivos ou frieza tecnológica de raciocínios gélidos extremos entre os quais o mundo atual se debate.
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