Houve tempo em que poucos homens de letras no país escapavam da fatalidade da burocracia.
Uma tradição antiga dizia que entre as funções do Estado estaria subvencionar o mínimo de conforto às nossas melhores cabeças.
Machado de Assis, por exemplo foi funcionário. Há muitos outros: Drummond, Otto Lara, Paulo Mendes Campos... Até Cartola foi contínuo em um ministério.
Parece-me justo que assim seja e digo mais; o Estado teria até certa obrigação escrupulosa de prover o pão a almas como as citadas.
Nunca um trabalho muito elaborado ou de grande responsabilidade. Só uma sinecura simples que permita ao funcionário público imaginar um elefante, sair ver o mar ou uma mulher, ler um clássico ou simplesmente flanar pela cidade garimpando material para as crônicas que nós tanto amamos.
Afinal, é cheia de sobressaltos a vida de um homem dedicado ao mister de escrever. Assim, nunca demais a tranquilidade de um salário mais benefícios, por menores que sejam. Pode-se seguir em frente, enganar credores, comprar um sapato novo para a mulher amada, pagar a conta da luz para escrever à noite e, com alguma sorte, garantir o “uisquinho das crianças”.
Há funcionários e funcionários entre os escritores. Charles Bukowski foi carteiro. Borges teve mais sorte; ganhou as chaves da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Não tanta como Vinicius, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira, que integraram o corpo diplomático. A bela carreira inclui viagens, grandes jantares e despesas pagas – muito apropriado para quem tem por oficio primeiro, escrever.
Deve-se, contudo, evitar o magistério, a vida acadêmica, tratados, teses e conferências. Muito aborrecidos e perigosos. A escola sempre atrapalha a educação das pessoas.
Nada como um bom posto de segundo escalão (“secretário adjunto da sub relatoria”), para dar paz a alma amarfanhada de um escritor.
Eu mesmo já tive meus dias de burocrata menor. E imaginei-me iniciando fulgurante carreira de escritor, as expensas do erário.
Trabalhei como contínuo, carimbador, fiscal, emiti alguns pareceres. Por algum motivo, porém, a minha carreira literária não decolou.
Até tinha um crachá, acesso à fotocopiadora, bom repertório de piadas, estratégias para burlar o livro ponto, telefone, máquina de escrever (sou do século passado) e depois computadores à disposição por longas tardes, mas alguma coisa deu errado.
Olhando em retrospectiva acho que, mais do que a falta de talento, a culpa foi do intragável café de repartição. Aquele coado e adoçado ao mesmo tempo. Indesculpável. Como funcionário, aprendi a deglutir sapos. Mas nunca engoli o café doce das repartições públicas.
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