Parece que foi ontem que passávamos a tarde em renhidas “duplinhas de pênalti”. Atletiba no portão da minha casa. “Eu sou o Tostão”, dizia o ameaçador adversário. Eu “era Odemílson”, o minotauro de 150 mil dólares.
A bola às vezes caía na casa do Seu Alexandre que morava na esquina com sua senhora. Eles tinham a idade dos meus avós, mas o Gordo (que sabia das coisas) jurava que tinha visto eles “fazendo” pela janela da cozinha.
Seu Alexandre tinha sido goleiro do Atlético e tinha a pele amarelada. A casa também era amarela e mesmo a Laika, a cadelinha, tinha pelagem cor de casca seca da mimosa. Na casa em frente morava o “véio Mauro” que na verdade era russo e não se chamava Mauro. Seu Vladimir, o avô do Otto, era comunista e fechava (com a Laika e o “véio Mauro”) a trinca soviética da rua 21 de Abril no final da década de 1980. Glasnost no Alto da Glória.
Na nossa, em tardes de chuva, a mãe fazia bolinho da graxa: com banana para o meu irmão, açúcar e canela para mim. Para comer depois da guerra; mamonas e uvas japonesas em flor.
Era o tempo em que ninguém que eu conhecia tinha morrido. Os mortos já me eram apresentados nesta condição.
Passávamos as tardes em lugares incríveis e perigosos: o bambuzal de trás do Couto Pereira com seu rio coalhado de girinos; a casa da “egípcia” ou a casa do careca que dizia que era ufólogo (soube depois que precisou fugir do bairro por ter mostrado um “objeto não identificado” para alguns meninos).
Na frente da casa do menino negro, o Gordo puxava o coro da maldade absoluta: “Bombril, puta que o pariu, Bombril, puta que o pariu...”.
O Gordo – que diziam que sabia das coisas – tinha estas grandes ideias. “Vamos fazer uma bomba de merda?” “Vamos roubar parafina na capela do cemitério?” O Gordo não parava. Hoje é advogado tributarista.
Um dia, eu, ele e os outros grilamos o maior terreno baldio do bairro. Mauá com a Floriano (o pianista e não o marechal). Lá passamos a mandar nossos jogos contra os rivais do bairro no campinho aberto a foice pelo Oliveira – o factotum da área – ao preço de duas cervejas. Corte trapezoidal, ralo no meio e mais cheinho nas pontas.
No caquizeiro atrás do gol, eu vi Débora (vogais explosivas) pela primeira vez. Tinha olhos verdes, vivos, inteligentes. Nas pernas queimadas do sol de Caiobá, brilhavam os pelinhos dourados de água oxigenada. “Por que você anda sempre junto com este bobo?”, perguntou-me apontando o Gordo.
No dia seguinte parei de andar com ele. E comecei a andar com ela que, no fundo, era quem sabia das coisas.
Hoje em dia, o campinho é uma escola pra crianças. Sei não. Acho que naquele tempo é que era.
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