"O quê? Você não tem um caderno de poesias?" Era um amigo, lá pelos 15 anos, me ralhando estupefato por tamanha falha em meu caráter. Supus que ele guardava um caderno debaixo do travesseiro, no qual inseria seus mais lindos pensamentos. Tudo em verso.
A imagem daqueles sonetos de Shakespeare assustadores da livraria me deixava um grande ponto de interrogação. Como alguém podia ler e ainda por cima gostar daquilo?
Confesso que tentei textos ilustres, como A Divina Comédia, mas parei no "Inferno". Com o Tomo I de Orlando Furioso até fiz uma tentativa, mas o que mais me animou foram as ilustrações belíssimas de Gustave Doré.
Só na faculdade entendi que o texto poético pode vir em prosa também. Foi com Grande Sertão: Veredas, que deve ter sido onde adquiri o péssimo hábito de ler páginas inteiras só no embalo das palavras, achando lindo, mas com pouquíssima cognição. (Essa habilidade depois se mostrou útil para revisar páginas inteiras de balanço financeiro.)
Encontrar o humor em versos me ganhou um pouco também. O que dizer, então, da poesia concreta, onde lixo se transforma em luxo? "Eu te amo desde tempos imemoriais", escreveu Carlos Drummond de Andrade, para então saltitar por eras e muros de conventos de uma estrofe para a outra, rasgando o peito a punhal de revolucionário, lutando boxe.
Aliás, o relacionamento entre amor e poesia é imemorial. O garoto apaixonado da quarta série infalivelmente presenteará a amada com um folha do caderno, dobrada duas ou três vezes, contendo as mal traçadas linhas. Feliz daquela que tudo guarda.
Mas não é só o amor platônico que pode ser poético. No recém-lançado O Viajante do Século (Alfaguara), o argentino Andrés Neuman, que está no Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty, reúne em um quarto de pousada, na fictícia Wandernburgo, um forasteiro e uma dama ilustrada, mas podada pelo pai. Ali eles se põem a traduzir quilos de poemas, relacionando um autor ao outro e avaliando as qualidades de cada um. Autores da época em que se passa a história, o início do século 19, como Goethe, Schiller, Keats.
Naquele mundo imaginado, o casal se deleita em trocar visões compartilhadas da literatura, sem qualquer sinal de competição. Ele avisa, como quem não quer nada, que ela assinará junto com ele um lote de traduções para uma determinada revista, o que ela aceita um pouco a contragosto, e assim continua sua trajetória de emancipação.
Um diálogo que escutei por acaso me ensinou outra coisa sobre relacionamentos. Um marido resmungava: "Segredos de liquidificador? Que porcaria quer dizer isso?" A mulher, pacífica, respondeu: "Poesia".
Mas nem sempre a trajetória da trama conduz os amantes a um final feliz, como também insinua Drummond: "Os amantes se amam cruelmente/e com se amarem tanto não se veem./Um se beija no outro, refletido".
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