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Alguém que leia a sério 300 livros sobre um assunto qualquer – história do Brasil ou gastronomia, para ficar em dois exemplos – pode se tornar uma referência na área, terá informação suficiente para analisar os temas a que se dedicou, talvez seja capaz de pensar em abordagens originais ou se sinta seguro para transmitir de alguma forma aquilo que aprendeu, tornando-se professor, pesquisador, ou também autor de livros sobre História do Brasil ou sobre gastronomia.

Li uns 300 livros em quase sete anos cobrindo literatura estrangeira e brasileira no Caderno G, no ritmo de mais ou menos um por semana e a maioria dos títulos foi de ficção. Dia desses, estava pensando: "Isso me torna especialista em quê?".

Você pode responder: "Especialista em literatura" e isso seria muito generoso, mas pouco preciso. Por ter de acompanhar as novidades do mercado editorial, as leituras sempre foram orientadas pelos lançamentos e o grosso dessas publicações é feito de títulos de autores contemporâneos.

Uma vez ou outra, surge uma nova tradução de Moby Dick, de Herman Melville, ou de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, mas o cotidiano é dos escritores vivos, muitos norte-americanos e ingleses, vários europeus, alguns asiáticos e poucas exceções. Os brasileiros contemporâneos estão em algum lugar entre os europeus e os asiáticos (entre os vários e os alguns).

O que quero dizer é que acompanhar a agenda de lançamentos das editoras brasileiras não garante um conhecimento sólido de literatura. É muito diferente de dedicar anos à leitura de clássicos. Talvez eu seja "especialista em literatura pu­­blicada no mercado editorial brasileiro nos últimos sete anos". Mas mesmo essa afirmação seria um exagero porque 300 livros é só uma fração do que saiu no país no período.

Uma observação importante. No jornal, o ritmo de trabalho exige que um livro a ser resenhado seja lido em menos de uma semana, um tempo relativamente curto. Um livro que valha a pena necessita de mais tempo de leitura e de reflexão. Um leitor comum – ou ideal – pode passar semanas ou mesmo meses convivendo com um bom livro. Pense em Crime e Castigo, de Dostoiévski (quase 600 páginas), lido com atenção, ponderado e relido em partes se for o caso. É um trabalho de dois meses ou dois anos, dependendo da disciplina e do interesse do leitor. Você também poderia passar a vida inteira relendo Crime e Castigo e adorar a experiência.

Eu, quando leio rápido, avanço a 50 páginas por hora (lendo profissionalmente você acaba fazendo esse tipo de cálculo). Sou lento, tomo notas, volto no texto várias vezes e a velocidade diminui quando estou trabalhando para uma resenha ou reportagem. Claro que há textos que não exigem tanta dedicação, mas mesmo esses são anotados e relidos.

Ler, pensar e escrever sobre um livro no intervalo de uma semana tem muito pouco a ver com o prazer da leitura. É como achar que o provador de café aprecia o trabalho da mesma forma que alguém bebendo uma confortante xícara de café quente, debaixo de cobertas, numa noite de inverno. Uma prova tem pouco a ver com desfrutar daquilo que é avaliado. Leio os livros, mas não os guardo comigo – talvez isso explique por que, passado um tempo, mal consigo me lembrar dos romances que li para o trabalho. Admito que, tudo considerado, não é um jeito ruim de ganhar a vida. Mas acabou.

Na segunda-feira, começo a trabalhar na editoria de Mundo e essa é uma boa notícia. Vez ou outra, devo escrever para o Caderno G. Não é bem um adeus, afinal.

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