Vestiu verde e só meses depois se lembraria da cor oficial do luto. Nada mais encenado do que a elegância unânime em preto nos velórios e enterros: cadê o desconcerto? Por acaso resta apuro estético ou discernimento ao tombar-se com o fim de quem se ama? Curioso como o mundo pareceu mais real desde aquela madrugada ou foi a sensação sempre presente do absurdo que ganhou materialidade. Ela dormia. A voz da tia atravessou pastosa a escuridão. Parecia dor no estômago.
"Seu pai sofreu um acidente". Nuvens de gelo no abdômen e então a calma: sentiu pena daquela mulher, às quatro horas da manhã, preocupada em não feri-la com a notícia de que algo de grave acontecera a seu pai a seiscentos quilômetros dali. Imaginou-o a viajar pelo interior com seu pequeno carro azul-alface. Batida, capotamento: hospital. Ferimentos. Braço amputado, tubos, cadeira de rodas, cego. Em coma. Sentiu pena dele e o carinho a preencheu da perfeição de haver um pai e o amor dele e o seu por ele.
Quis diminuir o impacto do que a tia ainda hesitava em contar. Maldita necessidade de manter o controle. Imaginou a pior das perguntas. Se cogitasse a pior das hipóteses, qualquer dano menor pareceria suportável. Um "sim" salvaria a todos."Ele está vivo?"
Cortou com os dedos pequenas porções da fatia de pão puro. Mastigava devagar. Engolia devagar. O gosto do pão, primitivo. O gosto da farinha. As células do abdômen ainda tremiam. Sentir o sabor acentuado de qualquer alimento só faria aumentar a confusão interna. Sentou no banco de trás do carro, a lateral da testa encostada à janela. Era concebível partir ao encontro da mãe e da irmã para chorarem juntas a morte do pai, aos 45 anos, assassinado? Inconscientemente, já sentia no pai um ser fugidio, de tanta intensidade e fragilidade que parecia prestes a escapar-lhe.
A irmã a recebeu com um abraço e o aviso alentador: "Parece que ele está dormindo". Um cadáver, o pai. O primeiro que viu. Deitado no caixão com a expressão calma e doce, que despertava uma vida de sensações de carinho, aconchego e amor. A pele fria, de textura alheia. Depois, ela teria pavor de tocar as bochechas de um homem vivo porque imediatamente o imaginava frio e morto.
Beijou a testa fria muitas vezes, manteve as mãos sobre as bochechas para esquentá-las e abrandar sua rigidez. Tentou decorar cada traço do rosto, com pavor de esquecê-los. A boca pequena. O nariz quebrado. A barba rasteira. O queixo tímido. A dor física no abdômen, já a sentia como um novo órgão à esquerda do baixo ventre.
O que sucedeu nos quatro anos posteriores foi neblina. Nada não mudou. Difícil distinguir os meses. Foram anos de ar turvo e acinzentado recobrindo suas pupilas e narinas, a mente dopada. Não sofria como se imagina o penar de gritos e correntezas. A dor era calada, grave, comprimia veias e artérias, estremecia os órgãos e a atirava em um mundo deslocado de seu eixo original.
Outro dia, ouviu um grito irromper do interior da casa."Sua irmã se queimou inteira com o aquecedor de gás!". Era a voz da mãe. Sua pequena, frágil e terrena mãe, aquela que lhes deu consistência e chão firme contrastantes com a inconstância aerada do pai. A voz veio como uma onda fria que se espalhou do estômago para os membros, sem um arrepio visível na superfície.
Lembrou: a vida pode mudar em um minuto ou menos. Essa consciência física a distancia dos outros, disso ela sabe. No instante em que o dedo de um homem pressiona o gatilho do revólver que sustenta em sua mão. Faz pouco tempo, a caminho do trabalho, viu um guarda apontar ora ao chão ora ao ar sua arma de cano longo. Saía de um carro-forte em direção ao banco. Cruzando a calçada à sua frente, dava ele o passo que o deixaria mais próximo dela do que qualquer outro, quando soou o engatilhar. O som que seu pai ouviu antes de morrer.
"Sua irmã se queimou inteira no aquecedor de gás!" A imagem que se desenhou na mente dela naquele momento era avermelhada, coberta por bolhas, disforme. Incompatível com a pele muito clara, de toque infantil, os olhos verdes discretamente raiados de amarelo, o corpo jovem e feminino da irmã. Correu até o banheiro, tropeçando no braço do sofá azul escuro, mal alcançando com os pés o chão.
Pouco antes de avistá-la, a irmã pronunciou as palavras cicatrizantes: "Não foi nada". Havia uma vermelhidão sobre a pele, decerto ardor, nada profundo. Nada definitivo. Apenas um calafrio pelo corpo. A memória física. A possibilidade de reincidência.
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