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 | Felipe Lima / Gazeta do Povo
| Foto: Felipe Lima / Gazeta do Povo

No Brasil vivemos sob a ditadura da simpatia. Ela funciona como uma espécie de passaporte social capaz de abrir todo tipo de portas, desde aquelas que tornam mais rápida a ascensão profissional de alguns até as que liberam o acesso a uma vida povoada de muitos amigos e conhecidos, ainda que sejam na maioria virtuais, hoje considerados muito importantes no processo de legitimação de quem se julga "inserido no mundo".

Mas o que será, no fundo, essa tal simpatia? Quando algo espontâneo, inerente à natureza de quem a exala como uma fragrância orgânica, um componente essencial de sua personalidade, é mesmo um trunfo. Um talento valioso. Já o querer ser simpático, o forjar de sorrisos, as mesuras ensaiadas e, por vezes desmedidas, em uma espécie de amabilidade com manual de instruções, são estratégias algo sinistras. Veneno com gosto de balinha. Mas não há como negar que podem ser eficientes quando estrategicamente calculadas.

E parece que, entre nós, que ainda vivemos imersos em uma cultura na qual o historiador Sérgio Buarque de Holanda enxergou um protagonista ambíguo, o brasileiro cordial, vale de tudo um pouco para sair bem na foto. Menos ser antipático, ou fleumático, adjetivo que definiria alguém que de tão aparentemente calmo, sereno diante dos movimentos da vida e da realidade que o cercam, acaba parecendo ser indiferente a eles, arrogante mesmo. Ainda que não seja.

Por aqui, essa postura, assim como a própria palavra "fleumático", pode soar como doença, desvio, transtorno.

Comentários racistas e homofóbicos, se acompanhados de um tom aparentemente inofensivo de piada, "só de brincadeira", para descontrair o ambiente, são, para muitos, desculpáveis, quando não bem-vindos. "O cara tem um baita senso de humor!" Atitudes classistas, capazes de rotular alguém a partir do bairro onde mora, ou o meio de transportes que utiliza, também podem ser apenas pecadinhos sem consequências, caso venham de alguém que tenha a habilidade de interagir com o mundo com a desenvoltura de um camarada "boa gente".

Mas valores como honestidade e firmeza de princípios de pouco, ou quase nada, servem na terra de Macunaíma se estiverem desacompanhados de performances sociais que façam com que os que o cercam se sintam apreciados e reconhecidos. Você precisa deixar claro aos outros que eles existem.

Não surpreende, portanto, que o tal herói sem nenhum caráter que nos persegue, como uma sombra, indissociável de nossa origem mestiça, pautada por uma ética de conveniência, tenha sido criação de um homem tímido e reservado como o escritor paulista Mário de Andrade, um dos pais do movimento modernista no Brasil. Quantos Macunaímas não devem ter lhe infernizado a existência?

O belo curta-metragem Não Me Condenes Antes Que Me Explique (1998), de Cristina Leal, reconstitui, a partir de cartas do escritor ao poeta pernambucano Manoel Bandeira, as aventuras que ele teria vivido no carnaval do Rio de Janeiro, em 1923. Vivido pelo ator Tuca Andrada, o autor do romance Amar, Verbo Intransitivo, cuja timidez e suposta fleuma eram notórias, se entrega aos apelos dionisíacos da grande festa popular com sua esperada discrição, mas não sem entusiasmo. Seus olhos brilham, ao dar pistas da fogueira que se acende em seu interior. Mas ele não rodopia ao som dos sambas e marchinhas que animam os foliões até se tornar, a sua maneira, um deles. Desmanchar-se na massa.

Além dessas correspondências trocadas com Bandeira, em tom contido e confessional, sabe-se muito pouco sobre a temporada carioca de Andrade. Ou a respeito de sua vida íntima, mesmo que até o grande crítico literário Antonio Candido tenha feito conjecturas sobre sua sexualidade ambígua e o classificado como "um caso complicado".

Certo é que, ao morrer, em 1945, aos 51 anos, Andrade não entrou para a história como a personificação da simpatia brasileira. E nem precisava.

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