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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Há pouco mais de uma semana começaram a circular na imprensa internacional boatos de que o ator norte-americano Jack Nicholson havia tomado a decisão de se aposentar. Perdas constantes de memória, sintomas de alguma doença neurológica, o estariam impedindo de lembrar as falas de roteiros. Os rumores, felizmente, não se confirmaram: amigos do astro, de 76 anos, disseram que ele não está doente e nem tem a intenção de parar de trabalhar tão cedo.

A verdade só o tempo dirá.

Fato é que a ideia de não ver mais Nicholson na tela grande mexeu com o imaginário de muita gente, que há décadas se deleita com suas atuações, muitas delas memoráveis. Vencedor de três Oscars, duas estatuetas de melhor ator, por Um Estranho no Ninho (1975) e Melhor É Impossível (1997), e uma de coadjuvante, em reconhecimento por seu desempenho em Laços de Ternura (1983), ele é um dos astros mais populares de sua geração, além de ter um dos rostos mais reconhecíveis na história do cinema. Muito por conta de sua persona pública, ao mesmo tempo cínica, irônica e provocativa. Traços que muitas vezes levou para seus personagens, que sempre tiveram um pouco (ou muito) de Jack.

Ao ouvir a notícia da possível aposentadoria, e do triste motivo por trás dela, a primeira imagem que me veio à cabeça foi a do escritor Jack Torrence, seu personagem em O Iluminado (1980), no perturbador desfecho do filme de Stanley Kubrick. Enlouquecido, depois de atentar contra a própria família, o vemos perdido em um labirinto enregelado, que serve como metáfora perfeita para a insanidade que dele toma conta ao longo da trama, baseada no romance homônimo de Stephen King. Ele parece estar possuído, e ter esquecido quem é.

A perda da memória, ainda que gradual, para um homem para quem a habilidade de se lembrar sempre foi uma ferramenta essencial é de uma cruel ironia, uma situação desoladora e, por fim, labiríntica, que me fez parar e refletir sobre o que seja, enfim, a habilidade de lembrar de fatos e sensações. Dos mais triviais, como o que comemos no café da manhã, a acontecimentos marcantes, como o primeiro beijo, o nascimento de um filho, o dia da formatura, a perda de um ente querido.

Depois de pensar um tanto, concluí que a memória, em certa medida, é como uma governanta, capaz de manter em ordem nossa casa, de dar algum sentido lógico à narrativa de nossa existência, enfileirando fatos, entre eles estabelecendo ligações e nos dando, ao romper de cada dia, o mínimo de funcionalidade. Sem ela, nos desgovernamos.

Governantas podem, como o cinema nos ensina, ser doces e protetoras, quase maternais como Mary Poppins ou a Maria von Trapp de A Noviça Rebelde. Mas também cruéis e ressentidas, como a de Rebecca, a Mulher Inesquecível, clássico de Alfred Hitchcock. E a memória, sabemos, pode tanto acalentar quanto torturar.

No caso de Nicholson, ou melhor, de sua filmografia, algumas "governantas" transfiguradas emergem nesses dois espectros. No mais sombrio, surge a abominável enfermeira Mildred Ratched (Louise Fletcher), algoz do rebelde amalucado Patrick McMurphy em O Estranho no Ninho, de Milos Forman, que sucumbe a um sistema manicomial perverso. O contraponto de Ratched talvez seja a sofrida, porém solidária garçonete Carol Connelly (Helen Hunt) de Melhor É Impossível (de James L. Brooks), que nas palavras do irascível Melvin Udall de Nicholson, portador de transtorno obsessivo compulsivo, "dele conseguiu fazer uma pessoa melhor", reconstruindo sua história, quando ela parecia fadada a um futuro de alienação social e desolamento.

O fato é que, caso faça as malas e peça a conta, mesmo retirando-se ao poucos, a memória de alguém, quando se desfaz, esfacela tudo ao seu redor.

Que a de Nicholson se mantenha de pé por muito tempo.

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