Uma tradução nova do livro A Metamorfose, de Franz Kafka (1883-1924), saiu há pouco nos Estados Unidos. A edição tem uma capa genial em que as letras do título sugerem a forma de um besouro. A tradução é de Susan Bernofsky e a introdução, do cineasta David Cronenberg, o homem que fez A Mosca (1986) e o mais recente Cosmópolis (2012).
Aqui, o primeiro parágrafo antológico da história, na tradução de Brenno Silveira, para uma edição de 1988, da Civilização Brasileira: "Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto".
Colocar Cronenberg para falar de A Metamorfose é uma daquelas ideias que soam tão perfeitas que é difícil entender como não aconteceu antes. O texto dele foi antecipado pela Paris Review na internet e parte de um paralelo surpreendente: o de que Cronenberg também acordou para se descobrir transformado. Não em um inseto, mas em um homem de 70 anos.
"Nossas reações, a minha e a de Gregor, são parecidas", diz Cronenberg. "Nós estamos confusos e perplexos, e achamos que deve ser uma ilusão momentânea que logo vai se dissipar, deixando nossas vidas continuarem como eram antes".
Mais adiante, o cineasta argumenta que é questionável o desespero vivido por Gregor. Porque se transformar em um inseto pode ser uma experiência espetacular para alguém que leva uma vida modorrenta. Poder voar, por exemplo, seria inegavelmente uma vantagem.
(Uma coisa que me chamou atenção é o fato de Cronenberg decidir que o inseto protagonista é mesmo um besouro. Kafka não deixa claro qual é o bicho em que caixeiro-viajante Gregor se transformou. Ele poderia ser uma barata, talvez?)
Cronenberg se esforça para entender por que Gregor Samsa não tira proveito de sua mutação a não ser por um ou dois passeios pela parede do quarto, que parecem momentos bons e se demora na discussão sobre o que teria causado sua morte, fazendo paralelos com o cientista vivido pelo ator Jeff Goldblum em A Mosca. Este demonstra uma curiosidade entusiasmada e um pouco mórbida com todas as etapas de sua deterioração física. Gregor entra num estado depressivo que piora a cada dia (refletindo possivelmente o ânimo do próprio Kafka, que levou uma vida miserável a julgar por seus diários).
Suponho que todo mundo, em algum momento, acorda para descobrir que sofreu uma transformação definitiva, com a certeza de que a vida nunca mais será como antes. É quando você fica entre a vitalidade do cientista de A Mosca e a depressão do caixeiro-viajante de A Metamorfose.
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