Os documentários sobre a natureza degringolaram de uns tempos para cá. Em canais como Discovery, Animal Planet e National Geographic, a maioria das produções se preocupa demais em entreter o público e transformou em regras a edição frenética de imagens, os apresentadores gritalhões babando para a câmera e a trilha sonora barulhenta.
Está desaparecendo um formato em que a câmera não tem pressa e passa o tempo que for preciso à espera de um acontecimento, acompanhada pela narração de um sujeito com voz grave e tranquilizadora, explicando que "o mangusto-anão é um dos raros animais que se alimentam de carne de serpente...".
Alguém pode dizer que esse tipo de filme está ultrapassado, que ninguém mais tem paciência para um documentário em que nada explode e uma cena dura mais de cinco segundos sem corte nem movimento. Contra esses argumentos, tente ver Encounters at the End of the World, ou "encontros no fim do mundo".
A produção de 2007 foi bancada pelo Discovery Channel e é incomum para dizer o mínimo. (Não existe em DVD no Brasil, mas dá para assistir a íntegra no YouTube, sem legendas.) Foram pedir para o cineasta alemão Werner Herzog fazer um documentário sobre a Antártida. O diretor de 68 anos, surpreso, aceitou a proposta. Antes, porém, disse que "não faria outro filme sobre pinguins" como quem avisa que não está disposto a negociar concessões.
Na época do convite, haviam lançado há pouco o documentário A Marcha dos Pinguins (2005), um sucesso tremendo em várias partes do mundo, e a animação Happy Feet O Pinguim (2006) ainda levava hordas aos cinemas. Herzog imaginou que os produtores queriam explorar o filão, mas eles garantiram autonomia para o homem que escreveu e dirigiu os colossais Fitzcarraldo (1982) e Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972).
O alemão é também um documentarista com uma visão de mundo singular. Ele realizou, por exemplo, O Homem Urso (2005), sobre o naturalista que vivia em meio a ursos e acabou sendo estraçalhado por um deles. Em anos recentes, fez duas incursões pelo cinema norte-americano talvez para ganhar dinheiro com resultados bons até aqui: O Sobrevivente (2006), com Christian Bale, e Vício Frenético (2009), com Nicholas Cage.
Herzog aceitou então a proposta de viajar à Antártida para rodar o documentário com a condição que o fizesse do seu jeito. Encounters at the End of the World é uma exposição fascinante não só sobre o lugar, mas também sobre as pessoas que vivem e trabalham no continente. Com texto, narração e direção de Herzog, o filme concede inclusive algum espaço para os pinguins, numa das partes emocionantes (talvez sem querer ser).
Entrevistando o cientista marinho David Ainley, Herzog pergunta: "Os pinguins enlouquecem?". O especialista faz uma pausa para pensar e responde: "Nunca vi um pinguim bater a cabeça na parede, mas alguns deles ficam desorientados e terminam em lugares onde não deveriam estar". "Desonrientados?", devolve Herzog.
Ainley conta que, sem qualquer explicação, alguns pinguins se desgarram do bando e não adianta levá-los de volta porque, pouco depois, eles saem de novo, rumando para lugar nenhum. A equipe de Herzog encontra um desses pinguins e a cena, somada à narração do próprio diretor de inglês impecável e ao texto dramático, é arrebatadora. Enquanto uns pinguins voltam para o bando e outros seguem para o oceano em busca de comida, um pinguinzinho dá as costas e caminha na direção das montanhas, onde não há o que comer nem nada, rumando para a morte certa. "Mas por quê?", pontua Herzog.
Várias vezes, o cineasta diz que suas perguntas não são convencionais, que os seus interesses não são os interesses que normalmente orientariam um documentário sobre a Antártida. De fato, ele tenta estabelecer vínculos entre o "vazio quase infinito" do continente gelado e a chamada "civilização". Quando encontra pessoas que vivem na cidade de McMurdo, o único pedaço habitável da região, que lembra uma paisagem lunar, ele quer entender o que as levou até lá.
Há entrevistas com filósofo que virou tratorista, bancário que dirige ônibus, empreiteiro com antepassados astecas e cientistas que estudam focas e comparam os sons que elas emitem à música do Pink Floyd. Outra parte do documentário fala sobre o silêncio da região, em que é possível ouvir o que se passa na água debaixo do gelo, ou perceber, ao ar livre, o próprio coração bater.
Um detalhe me chamou a atenção. Ao fim de cada entrevista, antes de cortar para a próxima cena, Herzog mantém a câmera ligada alguns segundos mais. As pessoas terminam de falar e ficam encarando o diretor, às vezes desviam o olhar para a lente da câmera, mas, em todos os casos, parecem muito frágeis e sinceras. Algumas sorriem sem jeito, outras permanecem sérias e distantes. São dois, três segundos que podem mudar a maneira como enxergamos quem participa do filme. O mesmo acontece quando aponta a lente para uma paisagem. O tempo que Herzog dá é o que nos permite ver.
Julgamento do Marco Civil da Internet e PL da IA colocam inovação em tecnologia em risco
Militares acusados de suposto golpe se movem no STF para tentar escapar de Moraes e da PF
Uma inelegibilidade bastante desproporcional
Quando a nostalgia vence a lacração: a volta do “pele-vermelha” à liga do futebol americano
Deixe sua opinião