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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Há muitos anos, em um curso que fiz em Washington, um professor de Antropologia me fez pensar pela primeira vez sobre a possibilidade de existirem diferenças entre as formas de ser, sentir e agir das pessoas nos Estados Unidos, Inglaterra ou Alemanha, e nativos de países latinos, como Brasil, Portugal e Itália. "Vocês vêm de lugares onde a cultura do ser é muito mais importante do que a do fazer. Aqui, pouco importa seu sobrenome, de que família você é. Vale o que faz, o que tem a capacidade de produzir." Lembro de ele ter citado, entre outros exemplos, um certo Steve Jobs, gênio da informática que, em 1994, eu não tinha muita noção de quem fosse.

Na hora, tive a sensação de ter levado, ao mesmo tempo, um soco e um afago. De ter ouvido um insulto e um elogio, indissociáveis um do outro. Para ele, os mediterrâneos e os latino-americanos também teriam, em certa medida, a vantagem de viver com mais intensidade, guiados muitas vezes por seus sentimentos e emoções, e de não serem como os germânicos e anglo-saxões, reféns de uma racionalidade por vezes cerceadora e restritiva.

Minha primeira reação foi desqualificar o discurso como uma generalização simplista, discriminatória e conveniente (para ele), do tipo "Somos mais ricos, mais desenvolvidos, mais civilizados, porque nosso foco está em produzir, e não em questões subjetivas, menores e existenciais". Sem falar que aquela história de "não importa quem você é" parecia, em meados da década de 90, ainda deixar de fora afro-americanos e outras minorias.

Provavelmente, nem fosse a intenção do professor norte-americano fazer de sua fala um discurso de autoelogio cultural e, assim, se colocar em um patamar superior. Mas confesso que aquelas palavras permaneceram ecoando em meus ouvidos por bastante tempo – e eu, com frequência, me via questionando se, de fato, eu seria mesmo um representante da "turma do ser", e não da "do fazer".

Mas o tempo passou e acabei encaixotando a tal teoria de Antropologia Cultural em meu baú de memórias. Até que, há algumas poucas semanas, ouvi uma conhecida, em meio a uma conversa da qual eu participava por força das circunstâncias, dizendo, sem qualquer pudor, que não se deve confiar muito em "quem não tem berço", fazendo uso de uma expressão tão antiga e introjetada em nosso imaginário, que não nos damos conta das inúmeras conotações e desdobramentos que possa ter. De que berço, afinal, ela estaria falando? Do esplêndido, cantado pelo nosso Hino Nacional?

Naquele instante, como por encanto, me vi transportado à sala de aula onde tinha ouvido a tal fala sobre as distinções entre a to be e a to do culture. Era como se o velho mestre, em algum lugar do passado, estivesse rindo de mim. Não com escárnio, ou desdém, mas com a condescendência daqueles que têm a paciência de esperar que o outro cresça, amadureça e, finalmente, compreenda suas palavras, sem tomá-las ao pé da letra, ou como valor absoluto e inquestionável. E perceba o seu significado.

Quando voltei a prestar atenção ao que dizia minha interlocutora, que àquela altura defendia a causa "das pessoas que receberam boa educação como ela", e "cresceram em bairro de gente decente, de bem", percebi que eu precisava me levantar e sair dali com toda a rapidez. Que no mundo dela, de berços, eiras, beiras, nomes e sobrenomes, sobrava tempo e preconceitos e faltava ocupação, ideias construtivas, humanismo e solidariedade. Em seu elogio descarado aos "bem nascidos", percebi como pode ser cruel, sectária, equivocada e, por fim, atrasada a tal cultura do ser, dependendo de como ela dá as suas caras. Restou-me então, pedir licença e partir.

Tinha mais o que fazer. Talvez tentar dar uma mordida na maçã de Steve Jobs.

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