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Tempo houve em que a literatura brasileira tinha sede própria: era na rua do Ouvidor 110, entidade espiritual e mental, centro da extraordinária revitalização dos anos de 1930, vista e sentida como emblemática da nova literatura e dos autores novos: "A revolução no mundo literário brasileiro tinha em José Olympio a sua figura de proa. Sua editora publicava em ritmo impressionante. Ao longo de 1936, foram lançados 39 livros – mais de três por mês – , fora as reedições, reunindo uma constelação de autores. Da lista de lançamentos naquele ano constam Alceu Amoroso Lima, o grande pensador católico, com O espírito e o mundo, Anísio Teixeira, que em plena escalada do autoritarismo publicava Educação para a democracia, o integralista Plínio Salgado, com Palavra nova dos tempos novos, Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil. Entre os romancistas estão José Lins do Rego (Usina e o infantil Histórias da velha Totônia), Jorge Amado (Mar Morto), Graciliano Ramos (Angústia), Lúcio Cardoso (apresentado como "o mais jovem e mais prometedor romancista brasileiro", com A luz do subsolo), e Peregrino Júnior (Histórias da Amazônia).

Nas décadas de 1930/1940, a Casa (com maiúscula, como ele a chamava) era epônima não só da literatura, mas da vida intelectual (Lucila Soares. Rua do Ouvidor 110: uma biografia da Livraria José Olympio. Rio; José Olympio/Biblioteca Nacional, 2006). Sob aparências afáveis e comportamento bonachão, José Olympio era um patriarca autoritário, impondo e exigindo respeito, inclusive por parte dos amigos, por onde se manifestava a hubris do poder, nele mais do que evidente. A Casa era uma instituição, e ele sabia disso, vendo-se a si mesmo como sua transfiguração sob as espécies materiais: "Olhado com as lentes do que hoje se chama eficiência, seria condenado por gestão temerária. Como, no Brasil dos anos 1930, apostar em romance do Nordeste? E com tiragens cinco, dez vezes maiores do que os dois milheiros que eram o máximo da ousadia editorial na época? E ainda por cima adiantando o pagamento de direitos autorais?". Eu mesmo me beneficiei do sistema, em 1946, com o aparecimento de Interpretações: a Casa pagava metade dos direitos autorais na assinatura do contrato e o restante no lançamento. Tempos miríficos! Com esse livro obscuro, José Olympio apostava na crítica literária, gênero sabidamente de pouco público, é verdade que mantendo Álvaro Lins entre os seus autores regulares ao ritmo de um livro por ano.

Tudo isso ocorria no momento em que, depois da era Garnier, a edição brasileira passava por uma astenia que parecia definitiva. Não ficaram nisso as suas "ousadias", como as chama Lucila Soares: criou a coleção Documentos Brasileiros, biblioteca clássica de obras clássicas, publicando paralelamente as obras completas de Dostoievski num Brasil de menos de quarenta milhões de habitantes e mais de cinqüenta por cento de analfabetos. Tudo deu certo como tudo parecia dar certo em suas mãos, até que os deuses o castigassem pelo pecado do orgulho: faltou-lhe modéstia na vitória e prudência em face dos desafios.

O fastígio ocorreu durante o Estado Novo, cujas relações com a intelectualidade ainda esperam o analista objetivo e isento. Basta dizer que os escritores e artistas mais prestigiosos colaboravam nas suas publicações oficiais ou manifestavam formas de adesão as mais diversas: Villa-Lobos o músico do regime, e Niemeyer o seu arquiteto; Portinari, o pintor oficial, tudo sob o emblema de "arte moderna" que o governo autoritário não só aceitava, mas estimulava. Lucila Soares cita alguns exemplos expressivos: "Drummond era chefe de gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema; Rodrigo Melo Franco de Andrade cuidava do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Augusto Meyer dirigia o Instituto Nacional do Livro, onde trabalhavam também Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade. Rodolfo Garcia estava à frente da Biblioteca Nacional [...] Eram tempos difíceis de guerra no mundo e ditadura no Brasil, mas as idéias fervilhavam e encontravam seu espaço, a despeito de tudo".

Praticamente, todos os escritores e artistas que contavam. Acusando o golpe, Drummond protestou quando Portinari foi rotulado de "artista oficial do regime", protesto que, aliás reconhecia uma situação de fato, sem excluir a dele mesmo. Todos serviam jesuiticamente com reservas mentais, mas serviam, porque os incentivos financeiros eram irresistíveis. Nesse mundo, o Catete sediava a República, enquanto a José Olympio respondia pela República das Letras, menos antagônicas do que depois tentaram fazer crer os que precisaram salvar a face. A "revista brasileira" da época foi Cultura política, dirigida a princípio por Almir de Andrade e depois por Nelson Werneck Sodré, nome também ideologicamente inatacável.

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