A autobiografia de Nélida Piñon (Coração Andarilho. Rio: Record, 2009) são um "testemunho impreciso", no qual, escreve ela, "misturo a colheita da memória com a invenção, porque é tudo que sei fazer. Os episódios que aqui registro, de teor familiar e cotidiano, emergem da minha modéstia e dos meus desacertos". Escritora célebre, muitas vezes premiada no país e no exterior, será, talvez, a figura representativa do que se tem por literatura acadêmica, tanto do ponto de vista estilístico, quanto no sentido próprio, tendo sido presidente da Academia Brasileira de Letras a que pertence desde 1989, sucedendo a Aurélio Buarque de Holanda em mais um daqueles "desencontros das sucessões" que, segundo Múcio Leão, formam o encanto da vida acadêmica. De fato, ninguém encarnaria melhor o espírito acadêmico, sem excluir-lhe os aspectos mundanos, para o que não lhe faltam antecessores ilustres.
Aqui temos o seu "perfil", tal como poderia ter sido escrito por algum dos memorialistas que enobreceram o gênero, com a vantagem da autenticidade do testemunho: " A seleção que faço da família, dos amigos, dos pensamentos vagos, compõe o meu horizonte pessoal. Sem dúvida é arbitrária, apresenta alto grau de subjetividade". Mas isso, sendo próprio da espécie, é o que o leitor deseja e espera sem prejuízo da parte de invenção que, por paradoxo, dá autenticidade à memória e às memórias.
Assim, escreve ela, "eu própria perante minhas imprecisões, e minhas certezas provisórias, surpreendo-me com o que relato. Mais ainda quando ouço o que me contam, alguma ocorrência relativa ao passado e que me teve como protagonista. Ao ver-me à mercê da fantasia alheia, duvido se há legitimidade em qualquer discurso, incluindo o meu [...]". Ela vive como se o mundo exterior fosse ou seja uma obra de que participa: é alguém para quem a literatura existe, ou para quem só a literatura existe, nela tendo o protagonista: "Quando o estimulante é sonhar com o amor, a carne, as emoções secretas, a que cheguei com a ajuda de Hesíodo, Safo, Virgílio. Graças ao poeta da Eneida, bati à porta do Hades, solicitei a Sibila, a pretexto de conhecer Anchises [...]", evocações permitindo supor que Nélida Piñon vive emocionalmente em estado segundo: nela, como no postulado clássico, nada existe na inteligência que antes não haja passado pelos sentidos, como nas recordações de um hotel em Paris, "onde vivi dias intensos, de onde trouxe, à guisa de símbolo, um cinzeiro abrasonado".
Tudo isso na atmosfera ambígua em que a evocação de Safo preclude a de Vênus: "Mas em madrugada recente, de retorno ao Brasil, tangida por sobressaltos e memórias, passei o cadeado no próprio coração [?], sem medir a extensão do gesto". Da qualquer maneira, "literatura ia se tornando assunto de minha arqueologia particular e coletiva". Ou, em outra passagem: "A literatura me persegue. Como se a arte fora o inferno e o purgatório ao mesmo tempo". Até ao momento em que a literatura é a verdade contraposta à hipocrisia: "no mês de agosto, dom Ventura perambulava pela paróquia escolhendo a dedo que casa visitar. [...] Entrava na sala com postura de dono [...] escolhia a cadeira na cabeceira da mesa [...]. Um tipo sanguíneo, com rosto entumescido e pescoço com veias grossas [...]. Um homem de Deus que, no entanto, me amedrontava. Sobre quem pesava a grave acusação de ter sido um delator durante a guerra civil, responsável pela morte de muitos homens [...]".
Contudo, a literatura ia aproximá-la de Deus, apesar dos don Ventura deste mundo: "a partir, sobretudo, de Dostoievski, tornei-me responsável pelo meu decálogo ético. [...] Em especial porque, à ausência de um modelo exemplar [sic] eu só podia contar comigo como referência, assim como é ela própria o seu ponto de referência como ficcionista autobiográfica. Basta lembrar o que diz sobre A República dos Sonhos, sua obra mais importante e, por todos os títulos paradigmática: Graças às palavras e aos suspiros que emanavam da família, eu ia reconstituindo a rota da viagem até à América, os percalços de uma travessia que os exaltava e os humilhava ao mesmo tempo, e que retrato, dentro da moldura ficcional no romance".
Tudo isso inclui alta dose de autoadmiração que Nélida Piñon não procura dissimular: "Minha jornada é intensa. Leio e escrevo em casa, nos aviões, nos hotéis... Viajo em excesso... o que nos permite admirá-la ainda mais como representativa da literatura acadêmica por assim dizer modelar.
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