Não seria de esperar que qualquer outra biografia de José de Alencar trouxesse informações novas sobre o homem, o escritor, o político ou as circunstâncias históricas em que viveu. O que, sim, pode-se presumir é que, soterrado sob simplismos exegéticos acumulados ao longo dos anos, ele seja praticamente desconhecido da maior parte dos leitores comuns, aí incluindo-se os estudantes de letras e seus professores, estes igualmente repetidores das verdades aceitas. Nesse contexto, não há como subestimar a conscienciosa pesquisa de Lira Neto, malgrado todas as reservas específicas que possa suscitar (O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar ou A mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. São Paulo: Globo, 2006).
É obra deliberadamente popularesca e até vulgar no estilo narrativo, a começar pelo título (e pela capa!) que certamente teriam consternado o espinhento Alencar, além de revelar evidente falta de familiaridade com o sistema político da monarquia. Deixemos de lado o tom chocarreiro com que se refere ao imperador e, mesmo, ao romancista, tratado familiarmente por seu apelido de criança, isso ignora o que, àquela altura, era a sacralidade da pessoa imperial e a seriedade intelectual de Alencar. Basta mencionar as "falas do trono" que Lira Neto acredita de autoria pessoal do imperador. Trata-se de documento parlamentar em que, sob a ficção real, cada novo gabinete expunha o programa de governo a que se obrigava e que, por natureza, eram as "falas do ministério", num regime em que o rei reinava, mas não governava, sendo por isso irresponsável em matéria política.
Lembre-se que, favorável pessoalmente à abolição (pelo menos uma década antes de 1888), o imperador, através do Conselho de Estado, sugeriu seguidamente a legislação respectiva sem conseguir vencer o maciço bloco reacionário dos senhores deputados que, de legislatura em legislatura, nada faziam. Nem mesmo as dissoluções eram de sua iniciativa, dependendo de proposta expressa dos gabinetes que, postos em minoria, viam-se impossibilitados de governar. Ora, Lira Neto, condicionado pelo regime presidencialista, toma o imperador por presidente do Império, quando na verdade, os presidentes é que se tornaram os imperadores da República, segundo o título famoso de Ernest Hambloch num livro de 1935, His Majesty the President. Para Lira Neto, o imperador era uma figura caricata que, na cerimônia da coroação, "quase desaparecia sob o manto verde de veludo [...] que, por causa da pequena estatura (sic) [...] se arrastava em várias dobras pelo chão [!], assim como "brincava com aquela espécie de gangorra política, em que conservadores e liberais se alternavam entre o topo e o chão".
Lira Neto vê a paisagem parlamentar pelo lado estreito do binóculo, atribuindo ao chefe de Estado os atos praticados pelos chefes de governo. Assim, em 1842, "o imperador lançou pela imprensa uma conclamação [...] na qual falava à nação na condição de pai extremoso [...]". Claro, era o gabinete que, aliás em péssimo estilo, se entregava à retórica habitual. Ainda um exemplo dessa confusão de poderes: após a derrota do Partido Liberal em 1863, "D. Pedro II entendeu que não poderia mais contar com uma maioria tranqüila no parlamento [...] optou por dissolver a Câmara e convocar novas eleições". Na verdade, o imperador não "optava", vendo-se diante de uma situação de fato, a resolver segundo as regras do regime.
Deixo de lado inúmeras outras observações da mesma natureza para tratar de uma confusão histórica, a do cap. XIV, em que Lira Neto atribui a Pedro II a estátua erguida em memória do pai, ocasionando o famoso episódio da "mentira de bronze". Podemos refrescar as lembranças com algumas recordações do barão de Paranapiacaba: "Em 1862 realizou-se a inauguração do Monumento à memória de D. Pedro I. Compareci uniformizado àquele ato e fiquei junto do Imperador [...]. Era visível a emoção, desenhada na fisionomia imperial [...]. Notei nos lábios do Imperador um sorriso expansivo e vi que dirigia a alguém um cumprimento. Segui a direção do olhar e do aceno e verifiquei ser alvo deles o Senador Firmino Rodrigues Silva, que agradeceu, curvando o busto. Era aquela saudação explicada pelo artigo com que Firmino naquele dia rebatera, triunfantemente, os que, de véspera, tinham sido publicados pelos que davam a qualificação de mentira de bronze ao monumento [...]". (W. M. História da inteligência brasileira, III, 1993).
Tudo isso é de uma seriedade moral que não pode ser abordado no tom depreciativo de Lira Neto, tanto mais que começava a se formar naquele momento e a esse propósito a "maré democrática" a que se referiu Joaquim Nabuco. Enganando-se de imperador e cedendo ao seu impulso para o humorismo inoportuno, Lira Neto imagina Pedro II na postura para ele impossível de estátua eqüestre: "Iriam erguer uma estátua ao rei. A figura do imperador ficaria imortalizada em praça pública, montado a cavalo em pose altiva, empunhando a espada no ar" notações em tudo contrárias ao personagem que, provavelmente, jamais empunhou uma espada nem se mostrava atraído por poses marciais em cavalos fogosos. Para completar, Lira Neto não poupa sarcasmos quanto aos interesses científicos e literários de Pedro II.
Claro, o ranheta Alencar não deixaria perder-se a ocasião, alinhando-se com os primeiros republicanos à espera do momento em que passaria a escrever no seu jornal, mesmo resguardando-se de qualquer suspeita adesista: "Indignado com os gastos da solenidade patrocinada pelo Tesouro, José de Alencar fez circular pelas esquinas do Rio de Janeiro o folheto A festa macarrônica, título que levou Lira Neto a outro contra-senso, atribuindo esse qualificativo universal ao nome dos artistas italianos que trabalharam na decoração do espetáculo. Na verdade, tendo se tornado proverbial, o adjetivo "macarrônico" designava a mistura de latim e italiano no dialeto goliárdico, empregado em suas obras por Teofilo Folengo (1491-1544). É no episódio de 1862 que se origina o culto republicano a Tiradentes como "verdadeiro" herói da Independência, por oposição a Pedro I que, além de tudo, representava a Casa de Bragança e nem mesmo era brasileiro.
Os republicanos viram na cerimônia a manobra dissimulada para preparar o espírito público a aceitar a idéia do III Reinado desde logo legitimado na pessoa da princesa Isabel, que começou a perder o trono a partir de então e não abruptamente, como se diz, no fatídico 13 de maio, duas décadas depois. Quanto a Alencar, era um ressentido, procurando superar as próprias inferioridades, a começar pelas físicas, lançando-se à luta contra os dominadores o Imperador, figura de Pai que se tratava de eliminar em parricídio ritual, o esnobismo dos aristocratas e o temor subconsciente de que o Olimpo parlamentar o recebesse com as mesmas grosseiras gargalhadas dos deuses legendários quando o coxo Vulcano ali penetrou pela primeira vez.
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