Naqueles bons velhos tempos, dizem os costumeiros idealizadores do passado, havia rigorosos padrões de moralidade pública e particular, realidade, entretanto, bem mais complexa quando a olhamos de perto. Sólidos conhecimentos históricos propõem, por reação natural, uma visão pessimista e desmistificadora, a exemplo de Emanuel Araújo em recapitulação que vale a pena ler ou reler (O Teatro dos Vícios: Transgressão e Transigência na Sociedade Urbana Colonial. 3ª ed. Rio: José Olympio, 2008).
É preciso aceitar a idéia de que nada inovamos em matéria de costumes e, se hoje nos escandalizamos com o comportamento pouco canônico de sacerdotes, é preciso lembrar que a carne já era fraca no Brasil colonial, nem se tornou mais forte nos séculos seguintes. Tais pecados eram punidos tanto pela legislação civil quanto pela eclesiástica (que, aliás, se confundiam), mas os papéis do Santo Ofício em suas visitações deixaram uma documentação claramente pornográfica. Assim, e para citar um exemplo dentre centenas, "o cônego Jácome de Queiroz, sacerdote de missa de 46 anos, confessou que levara para sua casa uma menina de seis ou sete anos que andava de noite vendendo peixe pela rua, e após embebedar-se teve relações sexuais com ela. Só que corrompia a dita moça pelo vaso traseiro, apressando-se a acrescentar: sem polução". Não foi caso único, nem com ele, nem com numerosos outros, mas é melhor deixar o assunto por aí.
Claro, era um país escravocrata, com grande diferença de condição entre o escravo urbano e o rural. Foi a partir deste último que se configurou a imagem convencional dos horrores da escravidão: sendo vergonhoso para o homem livre exercer qualquer atividade manual (nem mesmo carregar pela mão algum pacote, por menor que fosse), as profissões "mecânicas" era exercidas por escravos ou ex-escravos libertos, conforme as distinções de Emanuel Araujo: "O escravo urbano envolvia-se em três grandes atividades básicas: aprendia algum artesanato ou adestrava-se em qualquer ofício, dispensando o senhor do exercício direto da produção; trabalhava nas ruas para auferir o sustento do dono, quer vendendo pequenas mercadorias, quer alugando seu serviço; e dedicava-se exclusivamente às necessidades domésticas do proprietário".
A maioria dos cativos nos centros urbanos, escreve ainda Emanuel Araújo, "não se compunha de artífices e domésticos, mas dos ditos negros de ganho". O viajante francês Pyrard de Laval "assinalava em Salvador não haver português, por mais pobre que seja, homem ou mulher, que não possua seus dois ou três escravos que sustentam a vida de seu senhor, para quem deve trabalhar certo tempo todo dia, além de manter-se com seu ganho ". É sabido que muitos senhores possuiam escravos "por mero luxo", tidos como símbolo de status, "vasto contingente de domésticos que davam prestígio a quem os pudesse expor como criados ou lacaios, o que merecia a reprovação do jesuíta Jorge Benci: "Se os escravos e escravas não hão de servir ao menos para ajudar a seus senhores a sustentar a vida, não sei para que compram com tão grande gasto!".
Compreenda-se que o rigoroso jesuíta não condenava a escravidão, mas a ociosidade dos escravos: que o proprietário os fizesse trabalhar, ora essa! Raciocínio que algum leitor qualificaria de jesuítico, leitor para quem a escravidão era e é uma monstruosidade social e humana, enquanto no Brasil colonial era apenas e simplesmente uma forma normal de sociedade econômica, aliás aprovada e garantida pelos sentimentos religiosos. Para nós, o mais exdrúxulo, nas palavras de Emanuel Araújo, "era a existência de indivíduos sob pleno cativeiro como proprietários de escravos. Tal situação, na realidade, criou-se pela possibilidade de o escravo poder comprar sua alforria" com o peculio acumulado à custa de economias: "os senhores passaram a aceitar que o próprio escravo comprasse outro para auxiliá-lo a juntar dinheiro ou simplesmente para ser dado em troca, como reposição. Stuart B. Schwartz calculou que num lote de 613 alforrias da primeira metade do século 18 na Bahia, pelo menos 18 (2,93%) mostram essa forma de pagamento". Era comum que a primeira idéia do escravo alforriado por qualquer motivo, fosse comprar um ou mais deles para servi-lo, muitas vezes "vingando-se" dos maus tratos acaso recebidos do senhor ou pelo conhecido sadismo infantil, como na historieta contada por Brás Cubas.
Em síntese, conclui Emanuel de Araújo, "adúlteros, bígamos, invertidos de ambos os sexos, incestuosos, estupradores [...] toda essa gente constituía verdadeiras multidão desviante que durante três séculos desafiou o Estado e a Igreja [...] pela transgressão de condutas oficialmente instituídas". Ontem como hoje, jamais faltaram personagens no teatro dos vícios.
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