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O reaparecimento do romance O Mulo (Belo Horizonte: Leitura, 2007) convida a reavaliar a persona literária que na vida civil respondia pelo nome de Darcy Ribeiro (1922-1997), personalidade que, como nos versos do poeta, chegou tarde demais a um mundo desmasiadamente velho, encontrando ocupados os lugares que, em princípio ou em teoria, poderiam ser os seus. Foi sempre o segundo lutando por ser o primeiro: antropólogo, nada acrescentou ou inovou na obra dos seus antecessores; historiador social do Brasil, pôde ler Casa grande & senzala em lugar de escrevê-la; consumido pela ambição literária, procurou superar, ou, quando menos, igualar Guimarães Rosa e Antônio Callado por meio de paráfrases imitativas: Maíra (1979) e O Mulo; finalmente, no que se refere às estruturas educacionais, percebeu que só poderia afirmar-se se afastasse do caminho a figura mítica do Pai, representada por Anísio Teixeira.

Este último episódio é um exemplo por assim dizer didático de parricídio ritual, aliás por ele mesmo documentado, questão mais complexa e delicada por suas implicaçõoes éticas, tanto pessoais quanto profissionais (Ensaios insólitos, 1979). Amigo íntimo e protegido de Anísio Teixeira, ambicionava, entretanto, em lugar dele, o posto de primeiro reitor da Universidade de Brasília então criada e que, no consenso geral, estava destinado ao educador baiano. Darcy Ribeiro procurou-o para propor uma troca: a reitoria, que queria para ele mesmo, e a vice-reitoria para o seu mestre, procedimento, diz o próprio Darcy Ribeiro, que "não foi dos mais cautos e respeitosos", e que, apresentado em forma de ultimato, foi aceito, demonstrando a sua grandeza de alma (literal).

Tudo bem considerado, os Ensaios insólitos podem ser vistos como o livro característico de Darcy Ribeiro, volume de juízos contraditórios, raciocínios simplistas e generalizações infundadas, texto mais brilhante e ofuscante do que sólido e fecundo. Em outras palavras, vindos de Darcy Ribeiro, esses ensaios nada têm de insólito. É livro que se critica por si mesmo, lendo lado a lado, sem qualquer comentário as passagens que escreveu ao sabor dos interesses momentâneos, reações emocionais, ressentimentos mal contidos e ilimitada auto-admiração (que admitia sem dificuldade). Não raro, suas ações eram determinadas por conveniências políticas: assim, por exemplo, tomou partido em favor do projeto de lei que favorecia as escolas confessionais em detrimento da escola pública, percorrendo o país em campanha de propaganda.

Como situá-lo no quadro intelectual que tem Gilberto Freyre como figura dominante, ou mesmo, Manoel Bomfim, há pouco recuperado numa tentativa, aliás, malograda de revalorização? Nele, as promessas implícitas e as reivindicações expressas não se cumpriram na obra realizada: foi um dispersivo polêmico, emocional e desequilibrado, longe da gravidade mental que se espera de um pensador. Todos os seus livros deixam a impressão de improvisados, sugerindo um desenvolvimento que não veio. Manoel Bonfim, se foi igualmente emocional como historiador, esteve, pelo menos, adiante do seu tempo, nos estudos sobre a simbologia no pensamento e na linguagem.

Aspecto, este último, que revela, por inesperado, a discronia ou ucronia característica nas idéias de Darcy Ribeiro: é que, tendo chegado tarde demais para rivalizar com os seus mestres, ou mesmo contracená-los em estatura, chegou cedo demais para atualizar-se com a grande renovação metodológica e mental do Estruturalismo desencadeada por Lévi-Strauss justamente em matéria brasileira. Discronia comparável e simétrica ocorre na sua obra de ficção, conforme ficou dito. Ele deveria ter feito com Maíra e O Mulo o que Guimarães Rosa fez com o regionalismo dos anos 30, isto é, renová-lo. Mais pelo efeito de surpresa, Maíra pareceu à primeira vista a grande revelação do romance em 1976 (20 anos depois de Grande sertão), assim como O Mulo não esconde as repetições e o cansaço narrativo. São exemplos do que já se chamou a "ansiedade da influência" que leva muitos a escrever simplesmente porque outros já o fizeram. São romances de fórmulas repetidas sob as aparências de criação original.

Os episódios e a intriga são diferentes, mas não a matéria nem a estrutura romanesca, a que acrescentou uma coprolália obsessiva, sem qualquer função na narrativa, cujo modelo se encontra, por inesperado, em... São Bernardo: "Este escrito de meu punho e letra é minha confissão e testamento. Aqui confesso meus pecados muitos... Filho, sei com certeza que não fiz nenhum... Destrambelhei. Hoje só penso bestagem. A cabeça não dá sossego. Dasatinou. ... Breve vida minha que se esvai roubada de mim para sobejar como sombra do meu corpo ausente [...]".

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