O romance de Carlos Moraes (Desculpem, Sou Novo Aqui), continuação evidente do anterior (Agora Deus Vai Te Pegar lá Fora. Rio: Record, 2004/2009), inscreve-se na tradição das educações sentimentais que, sob estilos narrativos peculiares, amplidão da matéria e diferenças da época, são mais numerosas em nossa literatura do que pareceria à primeira vista, se lembrarmos obras tão diversas como A Conquista (1899), de Coelho Neto, O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, e Moleque Ricardo (1935), de José Lins do Rego, para destacar obras tão distintas entre si quanto é possível. Agora, é o jovem gaúcho que, abandonando a carreira sacerdotal e deixando a sua pequena cidade, vê-se, afinal, integrado mais ou menos por acaso no pequeno jornalismo dessa Babilônia que se chama São Paulo: "O ônibus foi subindo o que devia ser a avenida Rebouças, entrou pela Duque de Caxias e foi dar numa rodoviária que, a primeira vista, não era muito diferente nem muito maior que a de Dom Pedrito, aonde todos os fins de semana eu ia ajudar um colega padre. Eu já ia me perguntando se, na prática, São Paulo não passa de um monte de Dom Pedritos reunidas, quando fui prontamente impedido pelas últimas instruções dos meus três mentores gaúchos acerca de minha nova vida: Faléco, o advogado que me tirou da cadeia; o primo Poty, gaúcho praticante, e mais o nosso ligeirinho primo José, vereador da Arena. Essa ideia de São Paulo como uma Dom Pedrito expandida batia de frente, por exemplo, contra as recomendações do primo José [...] a primeira coisa que eu devia fazer ao ir para São Paulo era deixar o padre na estrada, assumir sem mais as regras de uma nova vida, que o mundo é assim mesmo, o que se vai fazer [...]. Assim, desse jeito. Com palavras mais delicadas, Faiéco e o primo Poty também insistiram em que eu agora devia ver a vida com mais realismo. [...] Na prática, os três pareciam achar que trinta e poucos anos de vida, 12 de seminário, oito de padre e mais uns nove meses de cadeia não tinham me preparado para grande coisa neste mundo aqui fora".
Isso dá ideia do estilo narrativo de Carlos Moraes, cuja originalidade literária precisa ser enfatizada desde logo, a começar pela abordagem da matéria: enquanto as educações sentimentais são geralmente escritas no modo dramático, seu espírito irônico desdramatiza episódios e circunstâncias que outro tendem a apresentar lacrimejante e implicitamente reivindicativa ou irrealista. Encontrando emprego numa empresa jornalística, o personagem imaginava que "escrevia bem", mas era o "bem" do idioma eclesiástico, untuoso e declamatório, recebendo este conselho do editor: lesse "daqui pra frente muito Hemingway e Graciliano Ramos a fim de curar definitivamente meu texto jornalístico de quaisquer arroubos num tom assim de quem fornece duas marcas de aguarrás para remover excessos. Cheguei a imaginar meus textos secando ao sol dos sertões de Graciliano Ramos e meus pobres adjetivos sendo alvejados, um a um, pela carabina certeira do Hemingway".
Havia, também, outras importantes correções de estilo, nomeadamente nas relações sexuais e respectivo desempenho, para nada dizer do vocabulário habitual das redações. Dráuzia, colega de serviço, dá-lhe as primeiras lições elementares: "Tenta sair sozinho, fica num bar, numa fila de cinema, num saguão de teatro, e deixa acontecer. Tem um bar e restaurante famoso aí, o Riviera, lá em cima, perto da Consolação, onde se reúne uma bela juventude universitária [...] Essa Consolação, hein. Ruínha mais dialética. Como se não bastasse aquela igreja perplexa lá embaixo, o baita cemitério na subida, tem também o Bar das Putas e, agora, esse tal Riviera das moças letradas" onde a piada oficial era fazer um corte epistemológico numa pizza.
Assim, o herói percorre sucessivamente as diversas "estações" iniciáticas da educação sentimental e progressiva localização espiritual, chegando à beira da heresia: ao escrever matéria sensacional e provocativa sobre a vida de Jesus: "O que estraga Jesus é a divindade, que aí a gente fica imaginando ele todo luminoso entre nuvens cor-de-rosa e não sai papo que preste". Tratava-se de pegar as várias tradições para compor o seu verdadeiro retrato, do que saíram, afinal, três perfis: "Num, Ele me saiu um Che Guevara indócil; no outro, um hippie sereno e, no terceiro, um teólogo holandês bastante anticlerical". matéria aprovada pelo editor com entusiasmo: "Gostei muito do seu texto, parabéns", com enorme repercussão pública: "Volta-se a falar muito na pessoa de Cristo e abril, com a Semana Santa, é o mês certo para isso". Com "As Três Faces de Cristo", pode-se dar por concluída a educação sentimental do personagem, agora integrado na Sodoma e Gomorra a que foi conduzido por sua aventura espiritual.
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