Mais ensaísta que crítico literário de estrita definição (na mesma estante de Carpeaux, Antônio Cândido ou Augusto Meyer), Marco Lucchesi destaca-se entre os intelectuais das gerações mais recentes pela amplitude de interesses, erudição ecumênica e incomum afinidade com a coisa literária. (A memória de Ulisses. Rio: Civilização Brasileira, 2006). É um goethiano integrado na weltliteratur, cujo tipo de visão aplica nos seus próprios ensaios: Joaquim Cardozo (grande poeta sem a glória merece), Villon, o padre Vieira e Cervantes, figuras epónimas não só da literatura universal, mas também das suas épocas e das seguintes: "A filosofia de Kant, a Revolução Francesa e o Fausto de Goethe. Desse horizonte surgiram... os fundamentos do mundo moderno: a coisa em si e a representação, a figura do gênio e o complexo de Fausto, a igualdade e a fraternidade [...]".

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Tudo isso se passa no plano ideal da literatura como idéia, para além das belas-letras que a representam: "Pode-se mesmo dizer, sob a chancela de uma história suspensa, que Goethe escreveu a Divina comédia. E Dante o Fausto. Ou que Cervantes redigiu as Elegias romanas e Goethe, o Dom Quixote [...]. O problema da luz e da unidade, do silêncio e da palavra, da vida e da representação aproximam Dante, Goethe e Cervantes". Uma razão profunda tornou contíguos, neste livro, os capítulos sobre Spengler e Gibbon: são dois espíritos dominados pelo sentimento trágico da existência. Os grandes monumentos da historiografia e da filosofia da história são construídos sobre as ruínas das civilizações: "As ruínas são como que células mortas de uma história viva".

The decline and fall of the Roman empireé livro simétrico ao A decadência do Ocidente, este último escrito e publicado quando o processo degenerativo da civilização parecia irreversível, especialmente aos olhos de um alemão (1918 – 1922). Coloquem-se os dois livros nas perspectivas mentais em que foram escritos: "Onde estão? As glórias de assírios e romanos. O império sassânida e mogol... o farol de Alexandria... os olhos de Cleópatra... o orgulho de Bonifácio VIII... onde estão as colunas e propileus, outrora soberbos, que fizeram da Acrópole o centro do mundo?". Reflexões de Marco Lucchesi, que ainda transcreve as de Gibbon: "Enquanto este grande corpo [o Império Romano] foi invadido por violência aberta ou minado por uma vagarosa decadência, uma religião pura e humilde insinuou-se de modo sutil na mente dos homens, cresceu silenciosa e obscura, e finalmente erigiu a bandeira triunfante da cruz nas ruínas do Capitólio".

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Como se sabe, a idéia central de Spengler consistia em distinguir entre Kultur e Zivillisation, da vida ao letargo. De Apolo a Fausto, no que claro está, reencontramos o mito goethiano: "vejo na história universal", escrevia ele, "a imagem de uma eterna formação e deformação, de um maravilhoso advento e perecimento de formas orgânicas". Assim voltamos, não apenas a Goethe, mas a Vico e a Nietzsche, e aos grandes mitos, conforme a cota de Marco Lucchesi: "Apolo é a alma da cultura antiga, a linha clara e sutil, a expressão do equilíbrio... Fausto é o espaço puro, sem limites", segundo as notações de Spengler: "Fáusticos são a dinâmica de Galileu, a dogmática católico-protestante, as grandes dinastias da época barroca com sua política de gabinete, o destino do rei Lear e o ideal da Madona, desde e Beatriz de Dante até o fim do segundo Fausto".

"Grandeza e decadência de Oswald Spengler" – eis o título de um livro possível: "terreno movediço", conclui Marco Lucchesi, deslocando-se "vertiginosamente de uma época para outra. Cria infundados paralelos. Impossíveis morfologias. [...] O sistema é arrogante. Auto-suficiente... todos cumprem... um papel predeterminado. Isso levou Thomas Mann a criticar o descaso de Spengler com a humana liberdade, e Karl Popper e Isaiah Berlin. Para Spengler, apenas as culturas são indivíduas, e boa parte do fascínio de Der Untergang parece ter nascido dessa condição inelutável". Apesar de tudo, o livro "foi um best-seller nos anos vinte e trinta", assim como o de Arnold Toynbee seria nas décadas seguintes, para receber posteriormente restrições idênticas, quase literais. É o destino inelutável a que estão condenados todos os filósofos da história, justamente por não serem simples historiadores factuais.

Conforme Benedetto Croce em livro recentemente traduzido (Rio: Topbooks, 2006), A história é a história da liberdade, mas é também uma história de tentativas e erros, na qual, infelizmente, os erros são proporcionais às tentativas. Pode-se encarar tudo isso como um movimento em espiral, não o trajeto retilíneo e triunfalista em que acreditam os espíritos simples.