Em paralelo com o lirismo menor, não será excessivo pensar numa ficção menor – e pelos mesmos motivos: o conto é, por definição, menos "importante" que o romance, e a crônica é vista como espécie menor em relação com o conto. A prova está em que muitos contistas, e dos maiores, não resistiram à tentação romanesca (quase sempre com resultados decepcionantes), enquanto muitos romancistas cederam à tentação do conto. Não se trata de qualidade, podendo-se pensar, à maneira de Boileau, que um conto sem defeitos vale pelo menos uma novela – mas não um romance, creio eu. Uma verdade aceita, mas não proclamada, vê a novela como um romance de menores proporções ou um conto mais longo, problema que a língua inglesa resolveu chamando o conto de short-story, e a novela de long short-story (!), reservando para o romance a qualidade de novel.

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As contaminações desse dialeto universal que é o inglês levam muitos comentaristas a designar como "novela" o que, em boa terminologia, será, com certeza, romance (pelo menos em português), mas isso só serve para aumentar a confusão, o que, segundo parece, não tira o sono de ninguém. Pensa-se que a novela é qualquer coisa como um romance mais curto, ao mesmo tempo em que será um conto mais longo, por onde se percebe que tais questões não são tão bizantinas quanto parecem. Caímos no critério da extensão, defendido por E. M. Forster num livro conhecido, o que terá, pelo menos, o mérito de contentar todo mundo.

E contudo... e contudo, há em nossas letras qualquer coisa como a guerra das duas rosas a propósito de Machado de Assis: o partido azul afirma que, nele, o contista é superior ao romancista, por oposição ao partido verde, que sustenta o contrário. Em plano universal, Guy de Maupassant, mestre indiscutível do conto (que os escrevia sempre com grandes dimensões), publicou romances pelo menos medíocres, sendo, digamos, razoáveis os contos desse mestre indiscutível do romance que se chamou Dostoievski. E Marques Rebelo... e Monteiro Lobato... e Simões Lopes Neto... e, em plano mais modesto, os contistas reunidos por Flávio Moreira da Costa na antologia inspirada pelo futebol (22 contistas em campo. Rio: Ediouro, 2006), ao lado dos que escreve Marília Arnaud segundo o modelo tradicional (O Livro dos afetos. Rio: 7Letras, 2005).

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Os jornalistas do esporte falam em "jogos antológicos" para indicar os que entraram na história, mas há contos que apenas se tornaram antológicos por terem entrado na antologia de Flávio Moreira da Costa – "antológicos" entre aspas, como os de Rachel de Queiroz, Hilda Hilst e Anna Maria Martins, ao lado de muitos outros. Mas há obras-primas antológicas, a começar pelo extraordinário "Já podeis da pátria filhos", de João Ubaldo Ribeiro: "Sabe-se que o estrangeiro, ao jogar futebol, ataca o balão de couro como se fosse inimigo. Há quem diga que o joelho empedrado é natural do gringo [...] isso devido à comida que eles comem, que é muito melhor do que a comida que o brasileiro come, com exceção de que é muito melhor do que a comida que o brasileiro come, com exceção de que o joelho fica empedrado [...]."

Trata-se de partida na pequena cidade do interior que recebe o clube visitante: "Os gringos chegaram de uniforme vermelho e o São Lourenço entrou de camisa amarela e calção variando um pouco, porque o prefeito esqueceu de pedir calção também, mas é mentira que o Poroba jogou de cueca, isto espalham os que não se conformam com a vitória, os entreguistas". O jogo transcorria de acordo com as regras mais rigorosas da esportividade: "Eu disse a Didi que não se animasse, que não ficasse quebrando os joelhos todos do adversário, a não ser quando fosse por providência, que aí todo mundo entende. [...] ... nem Delegado nem Jonga estavam acertando direito a pisar nos pés do goleiro. [...] O problema era o goleiro japonês. O homem era o cão, o que tinha de pequeno tinha de abusado e só ia na bola fazendo ará-ará e outros gritos, com a cara de quem pretendia esfarelar a bola com os dentes, espantava bastante o atacante [...]".

Foi, de fato, um jogo antológico, assim como é antológico entre todos o conto de João Ubaldo Ribeiro – contraste didático com a maioria dos que se escrevem sobre futebol, mais propensos à tendência brasileira para o mórbido e o sentimental. Na linha das narrativas bem-humoradas e ainda com o acréscimo de incluir o futebol na civilização ítalo-brasileira de São Paulo (cujo sabor será provavelmente perdido pelos leitores de outros estados e, já agora, de outras épocas), cabe destacar o contista modelar dessa temática que foi Antônio de Alcântara Machado ("Corinthians 2 X 1 Palestra "), perfeito modelo, além disso, do conto urbano.

Nessa categoria incluem-se os de Marília Arnaud, contos de um mundo diferente, histórias da classe média e citadina, escritas com sabedoria narrativa e elegância estilística, entre eles o surpreendente "Os dias revelados" e o não menos surpreendente "Girassóis no inferno". Eis o "ataque" do primeiro: "Olha pra mim, Eugênio, e me ouve. Há muito tempo não conversamos. [...] Fica tranqüilo. Nada do que eu te disser hoje te fará sofrer mais do que já sofreste". O outro começa com estas notações: "No dia em que sepultamos Arturo, o céu estava claro e desanuviado. Enquanto caminhávamos do local do velório até o cemitério, um sol grande e abrasador pesava impiedosamente sobre nossas cabeças e um calor sufocante desprendia-se do asfalto".

Já se sugeriu que a diferença essencial entre o conto e o romance está no tempo narrativo: no romance, a leitura se faz no indicativo presente, em tempo real (linguagem de televisão...), enquanto o tempo do conto é o pretérito perfeito, fatos e peripécias que já aconteceram quando a leitura começa. De qualquer maneira, as 50 mil palavras, linha divisória, segundo E.M. Forster, que separa o conto, de um lado, e , de outro, o romance, pode ser um critério aceitável e benefício de inventário (linguagem jurídica...), matéria fluida sujeita aos imprevistos e caprichos individuais.

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