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A propósito de Insurgências e ressurgências atuais (São Paulo: Global, 2006), cabe distinguir em Gilberto Freyre, de um lado, o historiador social, o antropólogo, o ideólogo, o culturólogo, e, de outro, o intelectual, o homem de pensamento e de idéias, o generalista, para quem pensar é verbo intransitivo. É condição por ele reivindicada como sua qualidade dominante, na terminologia de Taine: "O autor é o primeiro a ter consciência de estar longe de ter sido exaustivo no trato de matéria tão ampla como a agora por ele abordada. Terá sido, quando muito, sugestivo. O que o situa dentro de sua vocação de ensaísta, com o ensaio, nos grandes ensaístas... competindo, até, com tratados de ostensivos pensadores ou filósofos ou sociólogos ou antropólogos de todo sistemáticos – sem deixar de ser ensaio".

O ensaísta é o especialista em idéias gerais, como às vezes se diz com ironia aliás inoportuna, já que, sem elas, não haverá idéias especializadas dignas de interesse: "A inteligência superior dos generalistas é de todo essencial à orientação dos modernos desenvolvimentos nacionais [...]. A inteligência superior de generalistas, quando convocados para orientar realizações de interesse público de governos ou de grandes empresas, pode evitar que se pratiquem erros como os que prejudicaram a construção da aliás monumental Brasília e vêm prejudicando... a obra, também complexa e, sob vários aspectos, admirável da autocolonização da Amazônia".

Claro, estamos falando de intelectuais, não de "intelectuários", segundo a corrosiva classificação gilbertiana, burocratas da cultura que pensam por verdades aceitas e lugares-comuns. Ele pensava por concordâncias e complementaridades, não por inconciliáveis oposições polarizadoras e excludentes: os ensaios aqui reunidos estudam, precisamente, os "cruzamentos dos sins e dos nãos num mundo em transição", fórmula, esta última, popularíssima no momento em que foram escritos, embora, na verdade, é próprio dos mundos estarem sempre em transição. Por isso mesmo, na verdade, é próprio dos mundos estarem sempre em transição. Por isso mesmo, o Tempo é o valor orgânico da condição humana, o Tempo que dura, o Tempo simultâneo que separamos didaticamente em passado, presente e futuro: trata-se de conceito inovador em denominação infeliz, caso raro nesse grande estilista. O tempo nos condiciona: "nunca fazemos questão do tempo presente. Antecipamos o futuro como lento demais a chegar, ou chamamos de volta o passado para deter como lento demais e chegar, ou chamamos de volta o passado para deter como demasiadamente rápido... vaguemos nos tempos que não são nossos e não pensamos naquele único que nos pertence... sonhamos com os que já não são nada e escapamos sem reflexão ao único que subsiste". (Pascal, esse discípulo de Santo Agostinho).

As insurgências e ressurgências que se sucedem, alternando-se, provam que as escilações são pendulares e cíclicas, entre o racionalismo e o irracionalismo, entre a mística e a política: copiando as máscaras africanas, Picasso criou o cubismo e a arte moderna, exemplo que Gilberto Freyre multiplica em numerosos outros: "O ritmo – ou a arritmia – insurgência, ressurgência, podem ser considerados uma constante do desenvolvimento cultural e na busca e interpretação do que seja a relação cultura-vivência [...] daí poder-se sugerir de respostas em torno de problemas de cultura quase nunca serem de todo precisas, isto é – pode-se acrescentar, – deixarem quase sempre portas abertas a opostos".

Na concepção freyriana, o "novo conceito do tempo" (nem tão novo quanto lhe parecia) era "tríbio", "segundo o qual passado, presente e futuro são simultânea e dinamicamente um tempo abrangente". São três tempos sociais, escreveu em outra passagem: melhor será qualificá-los de "transtempos socioculturais, à revelia de rigores cronológicos de apegos de historiadores liberais [...]". Entre as ressurgências contemporâneas, a mais inesperada será a do islamismo, caso em que "o importante não é a vitória específica de uma fé, conquistadora de adesões mistas, mas a conquista do poder real, através da mística ou – acrescente-se – dos mitos representados por essa fé". O poder islâmico ressurgiu "como competidor do cristão", aspecto para nós particularmente interessante dadas as influências culturais que lhe devemos. Nisso e em muitos outros tópicos, ele via mais concordâncias e assimilações do que deixariam supor os antagonismos evidentes.

O livro é também uma apologia pro domo sua, procedimentos nele obsessivo, enumerando, uma a uma, as grandes leituras que o singularizaram entre os brasileiros, as honrarias e distinções que recebeu ao longo da vida, os cursos acadêmicos que segui com mestres insignes, os aplausos consagradores de intelectuais estrangeiros. Tinha, contudo, legítima e incontestável consciência de sua originalidade: "Que mestre universitário dos grandes que tivera, que autor, dos muitos que lera, que pensador social, dos vários que me impressionaram, me induziria a essa audácia? [A de escrever Casa grande & senzala]. Não me lembro de nenhum". No que se refere aos estudos brasileiros, ele implantou balizas que ninguém, depois dele, pôde contornar – e que de fato não contornaram outros clássicos da matéria, como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

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