Com o volume comemorativo de 2003 (Academia Brasileira de Letras. Histórias e revelações. São Paulo: Dezembro Editorial), Daniel Piza acrescentou mais um título à história dos livros clandestinos. Trata-se de edição luxuosa, promovida pela Portugal Telecom para coincidir com o lançamento do seu prêmio literário: "A Academia Brasileira de Letras", escreve o diretor-presidente Eduardo Perestelo Correia de Matos na apresentação, "tem sido ao longo de sua vida parte de inúmeras polêmicas, por razões que neste mesmo livro são dissecadas e cuja gênese é também explicada na introdução feita pelo Embaixador Costa e Silva, ilustre Presidente da Casa".
Nada poderia haver de mais oficial e, contudo, num gesto de pudor e constrangimento, a Academia decidiu impedir-lhe a circulação tanto no mercado quanto fora dele. De fato, o livro "revela" fatos e episódios de todos conhecidos, assim como a falta de rigor historiográfico levou-o a incontáveis incorreções. Comecemos pelo moto Ad immortalitatem, para marcar-lhe o tropismo classicizante traduzido por Daniel Piza como "até a (sic, sem crase) imortalidade". Sabe-se que ad é preposição indicativa de direção, enquanto a preposição até marca um limite no tempo e no espaço, ou seja, exatamente o oposto. No ponto de partida os acadêmicos aspiram à imortalidade, não como marco final do trajeto.
Contra-sensos semelhantes ou incorreções propriamente ditas multiplicam-se ao longo do volume. Exemplo: no famoso encontro carnavalesco, Bordalo Pinheiro dirigiu-se a Machado de Assis com sotaque lusitano, não brasileiro, caso em que a anedota não teria sentido. Claro, D. Amélia de Freitas Beviláqua era esposa do conhecido jurista Clóvis Beviláqua, apresentado como Cláudio, indicando a ligeireza com que Daniel Piza trabalha. O legado de cinco mil contos deixado pelo livreiro Francisco Alves não era "uma pequena fortuna para a época": era, ao contrário, uma grande fortuna naquela ou em qualquer época, porque o valor da moeda não se calcula por comparações aritméticas mas pelo respectivo poder de compra. É o que também se verifica em mudanças de padrão monetário, na passagem do nosso velho mil-réis para as moedas que se lhe seguiram (diga-se, em favor de Daniel Piza, que ele não é o único a se perder nessas transições): "O dinheiro deixou a ABL mais tentadora. A instituição não cumpriu exatamente as determinações de Alves, mas criou prêmios literários sobre os dois temas que atraíram a atenção de escritores como Lima Barreto. Com o restante do dinheiro, além de aumentar o jeton para 100 réis, pensou em investir numa sede nova, pois o Silogeu já estava apertado". Daniel Piza quis certamente dizer cem mil réis, pois 100 réis era o preço de um sorvete pequeno no carrinho da esquina ou equivalente a uma passagem de bonde.
O mesmo tipo de informações aproximativas encontra-se em tópicos, diga-mos, mais acadêmicos. É, pelo menos, incorreto dizer que a Revista Brasileira tinha tido "outras versões nos anos 1850 e 1870": houve revistas com esse título, sem qualquer ligação orgânica ou seqüencial com a de José Veríssimo. Entre os membros da Academia, escreve Daniel Piza, "também não faltam jovens com uma obra ainda pequena fato impensável hoje em dia quando o mais jovem deles, Paulo Coelho, tem 56 anos". O autor refere-se aos fundadores, pois àquela altura o próprio Machado de Assis ressaltava tratar-se de um grupo de jovens, levando Daniel Piza a pensar que "a primeira geração da ABL foi também a mais brilhante e respeitável", postulado a demonstrar.
Uma das críticas mais renitentes que se fazem à academias consiste em censurá-las por não serem renovadoras ou mesmo revolucionárias. Ora, isso contraria-lhes a natureza orgânica e deliberadamente moderadora por definição: elas se destinam, não promover as revoluções do presente, mas a canonizar as do passado quando, pela força natural das coisas, já se tornaram conservadoras e nostálgicas. Segundo a sabedoria dos nossos políticos imperiais, nada há de mais conservador que um liberal no poder, assim como nada há de mais revolucionário que os conservadores na oposição, verdades que, aliás, servem para todos os tempos.
Na história da ABL, esse contra-senso foi representado de maneira exemplar por Graça Aranha, em busca de um auto-rejuvenescimento compensatório: "Graça Aranha tentou converter seus colegas ao modernismo. [...] A maioria disse não às idéias de Graça Aranha. Quatro meses depois do discurso, ele renunciou ao cargo [...]" mas Daniel Piza, rememorando perfunctoriamente o episódio, não refere que, desde 1910, a Academia proclamava as suas ânsias de renovação pelo órgão de Coelho Neto, anatematizado pelos modernistas como a besta negra por excelência, tolice que os espíritos simples e mal informados repetem até hoje, sem perceber que ele bem pode ser visto como patrono estilístico tanto de Simões Lopes Neto quanto de Guimarães Rosa.
Em outras palavras, cumpre escrever a história literária sem preconceitos ou idéias feitas. Eis o que dizia Coelho Neto na recepção de João do Rio: "A Academia acaba de abrir as suas portas aos novos; bom é que assim seja para que se não insista em dizer que, nesta Casa, onde assistem e excluo-me da referência os espíritos superiores da nossa literatura, tudo é gélido e retransido e pelos cantos, enconchados em sono veternoso, jazem ancianias tórpidas que, ao estremunharem, resmungam conceitos seródios, esmoem versos cediços [...]. Bem é que venha a mocidade ver como aqui se vive e trabalha [...]. Alas à Primavera!". Entre os "grandes escritores do período 1910 1945 que não quiseram saber da academia" (sic, com minúscula), Daniel Piza inclui Sérgio Buarque de Holanda e Oswald de Andrade (é verdade que, poucas linhas abaixo, menciona que este último se candidatou). Não uma, mas duas vezes, acrescento eu, indicando que não era tão indiferente assim às glórias acadêmicas. O mesmo pode ser dito de Sérgio Buarque de Holanda que, se não pleiteou a ABL, era membro da Academia Paulista de Letras.
O caso de Lobato é ainda mais interessante, porque, derrotado na primeira tentativa, quando recebeu apenas um voto (!), deixou-se inscrever uma segunda vez com o propósito pirracento de recusar investidura, caso fosse eleito, o que de fato aconteceu. Há, ainda o escândalo da eleição do presidente Getúlio Vargas, não por questões de personalidade, porque, se jamais houve um "expoente" em nossa vida pública foi bem ele, mas pelas desavergonhadas manipulações estatutárias, sabendo-se que não era homem de inscrever-se, nem de fazer as visitas protocolares aos ilustres acadêmicos.
Coelho Neto como precursor de Graça Aranha é fato que só pode surpreender aos mal informados e tendenciosos. A história autêntica dos acontecimentos de 1924 foi escrita por Josué Montelho em item bibliográfico que, de toda evidência, Daniel Piza não consultou (O modernismo na Academia, 1994). Compreende-se que a Academia tenha decidido entregar-lhe o livro à crítica imparcial dos insetos papirófagos. Há exemplares no instituto Histórico e na Biblioteca Pública do Paraná.
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