Josué Montello foi em nossas letras a figura paradigmática do escritor. O serviço diplomático, os grandes cargos do Estado, as missões universitárias e administrativas foram derivações paralelas e ocasionais, assim como o homem Josué Montello era apenas o suporte físico para que o escritor pudesse existir enquanto primeira e verdadeira natureza. É o que ele mesmo registra numa página do Diário: "A circunstância de ter vivido várias vidas, nos postos que exerci, nas cidades em que morei, nas mudanças de caminho, com novas experiências importantes, novos amigos e companheiros, como escritor, como jornalista, como professor, como diplomata, escrevendo artigos, peças de teatro, teses, monografias, e publicando romances, contos, novelas, ensaios, estudos históricos, polêmicas, sempre pude permanecer fiel a mim mesmo [...]" – fiel, palavra a sublinhar fortemente em nome da crítica, a sua condição de escritor. É, de fato, a matéria escriturária que predomina nessa visão autobiográfica – escritor e jornalista, autor de romance e ensaios, polêmicas e estudos históricos, tudo sob o signo e os imperativos de palavra escrita.

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Suas mais remotas reminiscências de infância já são, como prodigiosa semente, a premonição do futuro escritor que nele germinava: "Como deixar de emocionar-me, na Praça Saldanha Marinho, ao ver ao fundo o prédio do Ginásio Paes de Carvalho. Devo ter um ar de sonâmbulo caminhando ao seu encontro. Que pena! Hoje, o Ginásio está fechado. Debalde procuro alguém que me descerre a porta por onde eu passava, na minha farda cinzenta, sobraçando os meus livros. Não importa. A saudade é mágica, e eu atravesso a entrada do prédio, e subo-lhe a escada, e vou entrando alegremente por minha sala de aula, embora permaneça aqui fora, de braços cruzados, a olhar as janelas, a fachada do casarão silencioso. Só eu lhe ouço agora as vozes retroativas".

Fechada para quem já não era mais o menino Josué, a porta do Ginásio Paes de Carvalho tinha sido a porta estreita do aperfeiçoamento espiritual que o preparava para atravessar outra porta estreita, a da Academia Brasileira de Letras, que o acolheu ainda jovem, cenáculo privilegiado que lhe consagrou, por assim dizer, a condição de escritor, reservando-lhe a missão histórica de presidi-la e reformá-la, não apenas em coroamento simbólico. Nesse percurso, a biblioteca foi o lugar em que mais freqüentemente era visto, a começar pela própria, simples extensão orgânica das suas funções vitais. É natural que haja recebido como dádiva do destino a direção da Biblioteca Nacional, biblioteca das bibliotecas, onde encontraria a memória viva do passado: "Voltei hoje à Biblioteca Nacional para uma consulta na seção de periódicos. [...] Antes de passar à sala dos periódicos, olho o vestíbulo importante, e é com saudade de mim mesmo que me revejo quando ali entrei, com meus saldos de juventude, como seu novo diretor geral. Foi isso em 1948."

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Em outro instantâneo tipicamente montelliano, era fácil encontrá-lo a caminho de livrarias e alfarrabistas, e lá dentro, em atmosfera geralmente desaconselhada pelos especialistas das vias respiratórias. Assim, ainda adolescente, atravessava o largo do Carmo, para ir ver uns velhos livros portugueses que a Tipografia Teixeira andava liquidando, quando recebeu o chamado do futuro: "Não queres ir a Belém? [...] Eu nunca tinha deixado minha cidade, minha família, meus amigos. De repente, tomei uma decisão: iria para ficar. Já era tempo. Tinha de abrir caminho no mundo [...]" – caminho, bem entendido, que passaria através de livrarias, no Brasil e no exterior.

Na família dos escritores que lêem, Josué Montello pertence ao ramo dos moralistas, analistas da condição humana, temática de sua extraordinária arte romanesca, para nada dizer, é evidente, do incomparável monumento memorialístico que é o Diário completo, sempre fiel, não só à literatura, mas à "idéia de literatura", a literatura como entidade. Nesse conjunto, há numerosas obras-primas do romance brasileiro, nomeadamente Os tambores de São Luís, aqui singularizado como representante do conjunto. Ele mesmo reconheceu ter a "pena loquaz", o que nem de longe se confunde com a pena prolixa de tantos outros. Loquacidade tornada possível pelo espírito inventivo e, em termos práticos, por ter sabido fazer bom uso da insônia, como Pascal recomendava que devemos fazer bom uso das enfermidades. Suas vigílias nos têm impedido de dormir, ao contrário dos que, logo às primeiras páginas, nos mergulham em sono cataléptico. De fato, foi um surto de hemoptises e consequente resguardo que o confinou num regime de leituras, com o que voltamos às bibliotecas, às livrarias e à Academia Brasileira de Letras.

Por isso, o Diário completo é o seu livro epônimo, repositório de juízos críticos importantes, inclusive nos domínios da crítica literária. Ele se refere, por exemplo, ao romancista superestimado depois de morto que é Lima Barreto e também a um autor como Marques Rebelo, que, ao contrário, gozou em vida de enorme popularidade, já agora reduzido às notas de rodapé nas histórias literárias. Eis o que escreveu sobre o primeiro: "Releio salteadamente as Recordações do escrivão Isaías Caminha. Volto a reconhecer que Lima Barreto, dado por alguns críticos como o maior romancista brasileiro, chegou perto, mas não alcançou esse patamar. Há algo tosco no seu livro. Certo desequilíbrio narrativo. Por vezes, levado pelo instinto polêmico, acentua o traço caricatural, para ferir confrades e companheiros , como Coelho Neto e Virato Correia".

E, a propósito de outro ficcionista emblemático do Rio: "Rebelo cometeu o erro insanável quando deu ao seu diário o tom de um romance em vários volumes. O romance não chegou a ser romance. O diário deixou de ser diário. Este, bem escrito como é, com os nomes verdadeiros no seu lugar, teria a força de um testemunho. Como romance, não alcançou a harmonia que Machado de Assis soube imprimir ao seu Memorial de Aires, em que talvez se tenha inspirado". Tendo compilado o anedotário ameno da Academia, sem cometer indiscrições comprometedoras, deixou esparsas numerosas anotações sobre alguns dos nossos grandes nomes. Assim, Jackson de Figueiredo: "muito mais importante do que tudo quanto lhe saiu da pena, quer como crítico e polemista, quer como pensador católico". Oswald de Andrade parecia-lhe "deixar mais uma biografia do que uma obra literária. [...] A notícia de sua morte deu-me certeza de que, morto, ele continua a ser notícia, como foi em vida".

Quanto ao próprio Josué Montello, desde 1941, com Janelas fechadas, a 1996, com Enquanto o tempo não passa, além de Os tambores de São Luís, em 1975, e O baile da despedida, em 1992, deixou uma obra que engrandeceu a literatura brasileira com modelos de narrativa, finura psicológica e inesgotável imaginação, enquanto suas obras no campo do pensamento constituem outra biblioteca de grandeza semelhante. Nele, como em Mallarmé, tudo existia para se transformar em livro.

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