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"A fortuna crítica de Machado de Assis apresenta a singularidade de uma inversão atípica, começando com estudos críticos e literários (Sílvio Romero e Alcides Maya) para se concentrar em seguida na biografia (Alfredo Pujol), na repetição biográfica e na hagiografia, somente em nossos dias manifestando alguma tendência para a "volta ao texto" (Murray G. MacNeill. The Brazilian critics of Machado de Assis, tese de doutoramento na Universidade de Wisconsin-Madison, sob minha direção)."

Em 1916, Alfredo Pujol (1865-1930) foi um dos fundadores da Revista do Brasil, no mesmo momento em que realizava na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo as conferências sobre Machado de Assis por ela reunidas em volume no ano seguinte. Não foi um encontro casual, mas respondia à conjuntura de pensamento nacionalista que a própria revista dizia expressamente representar, mudança de idade psicológica que incluía a releitura crítica de Machado de Assis. Havia no ar o sentimento obscuro de que um mundo acabava, de que alguma coisa de desconhecido estava para acontecer: a crítica brasileira estava madura para reler Machado de Assis.

Era o que observava fina sensibilidade de Andrade Muricy: "Apesar de já estarmos na segunda década do século XX, parecemos ainda fim-de-século, e isto porque somos talvez fim-de-civilização". No que se refere ao romancista, a situação é mais paradoxal (e, por paradoxo, mais natural) do que poderiam perceber os contemporâneos: espírito formado e conformado nos oitocentos, prolongava-se como figura dominante pelo século seguinte a dentro desde os seus primeiros anos. Por isso mesmo, só o distanciamento crítico era capaz de avaliá-lo em sua justa medida, conforme Alfredo Pujol demonstraria de maneira insuperável. Começava-se a formar o corpus crítico machadiano tal como agora o conhecemos.

Não será excessivo pensar que a primeira década do século foi um momento machadiano, regurgitando o destemperado e tendencioso Hemetério dos Santos: era autor celebrado por Sousa Bandeira em dois capítulos das Páginas literárias,por José Maria Belo nos Novos estudos críticos e até por Luiz Ribeiro do Vale em trabalho acadêmico, a Psicologia mórbida na obra de Machado de Assis, cujas primeiras 50 páginas tratam do "histórico da psicologia mórbida na literatura", passando em seguida à análise das obras: Quincas Borba, por exemplo, era "um caso típico de loucura com toda a sua evolução bem caracterizada e os seus sintomas magistralmente descritos"; Rubião seria um "paralítico geral clássico" e Sofía, "uma Mme Bovary frustrada, que resistiu ao crime, não por sua organização moral, mas por uma circunstância estranha à sua vontade". Era, como dizem os franceses, uma allumeuse.

A fortuna crítica de Machado de Assis apresenta a singularidade de uma inversão atípica, começando com estudos críticos e literários (Sílvio Romero e Alcides Maya) para se concentrar em seguida na biografia (Alfredo Pujol), na repetição biográfica e na hagiografia, somente em nossos dias manifestando alguma tendência para a "volta ao texto" (Murray G. MacNeill. The Brazilian critics of Machado de Assis, tese de doutoramento na Universidade de Wisconsin-Madison, sob minha direção).

Pujol, agora reeditado (Machado de Assis. Curso literário em sete conferências na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo. Apresentação de Alberto Venâncio Filho. Rio: Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial, 2007), tinha, pois, razão, e mais do que pensava, ao apresentar-se como um desbravador de caminhos "para a futura glorificação de Machado de Assis", sendo extraordinário que todas as suas pequenas incorreções se devam à insuficiência de material e pesquisa então existente, e nenhum à falta de argúcia e leitura inteligente. Entre os acertos estão as considerações sobre a suposta indiferença política do romancista, aliás repetidas por muitos críticos, e dos melhores, até ao livro de R. Magalhães Júnior, sem esquecer o que ficamos devendo a Jean-Michel Massa.

Mas, além de situar para sempre o seu autor nas perspectivas e no nível de grandeza que é o dele; além de haver ordenado as informações disponíveis num quadro definitivo (fala-se menos dos seus acertos que dos seus enganos, o que é natural), ele polvilhou os capítulos de sugestões e conceitos que a crítica posterior deixou de aproveitar e explorar. Medusada pelo que aproveitou dos artifícios de composição de Tristram Shandy, por ele mesmo indicados no que já era, em si mesmo, um exemplo de humorismo, a crítica costuma ignorar a verdadeira e profunda influência que Alfredo Pujol, ao contrário, soube pôr evidência; como Octave Feuillet: "Foi nas páginas amoráveis do Marquis de Villemer que Machado de Assis sorveu a inspiração em que debuxou os doces perfis de Helena e Estela [...] irmãs de Caroline de Saint-Geneix [...]. Machado de Assis tem a mesma delicadeza, o mesmo pudor, a mesma discrição, a mesma sensibilidade [...]. Quanto ao estilo, a mesma harmonia, as mesmas tintas recatadas e suaves [...]".

Outra "influência profunda" é a de Garrett, inclusive na fluência narrativa e no tipo de visão. Pujol deixou sugestões que pouco foram aproveitadas, porque existe em nossa crítica a regra não escrita de ignorá-lo, nomeadamente quanto ao "brasileirismo" que o próprio Ma-chado de Assis definiu em página conhecida. Assim se explica que o livro de Pujol se haja inscrito na atmosfera nacionalista que determinou a criação da Revista do Brasil e da Sociedade de Cultura Artística.

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