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Obra definitiva, não só pela minúcia da investigação exaustiva e sistemática, mas também por incorporar ou corrigir os resultados das pesquisas feitas nos últimos 40 anos, notadamente por Gondim da Fonseca e Jean-Michel Massa (para nada dizer da obra seminal que foi o livro de Alfredo Pujol, sobre o qual se estabeleceu, através dos anos, o silêncio da ignorância), a biografia de Machado de Assis por R. Magalhães Júnior (1907-1981), a que nada acrescentou a constrangedora indústria editorial do centenário, só chegou à segunda edição, "revista e ampliada pelo autor", depois de praticamente três decênios, o que dá uma pobre idéia da cultura brasileira (Machado de Assis. vida e obra. 4 vols. Rio: Record, 2008), agora acompanhada pelo que se pode qualificar de volume complementar, igualmente indispensável, o Dicionário de Machado de Assis, pelo pesquisador exemplar que é Ubiratan Machado (Academia Brasileira de Letras, 2008), dois estudos que honram a nossa memória literária na mesma proporção em que a desmerece muito do que se publicou em 2008, sem excluir os mais ambiciosos.

Assim, "a vida e a obra" de Machado de Assis é capítulo ao mesmo tempo clássico e encerrado, "central" no sentido intelectual da palavra, tanto mais que R. Magalhães Júnior corrigiu discretamente para a nova edição o que o texto primitivo tinha de extrapolações factuais e interpretativas. Um dos seus processos característicos era o superdidatismo dos autodidatas, como, por exemplo, no que se refere à expressão ex-cathedra, tipo de erudição que se aprende nas páginas cor-de-rosa do Larousse, acentuando que "se incorporou de tal forma ao vocabulário de Machado de Assis que, a 8 de abril de 1884 [a menção datava de vinte anos antes!], serviu de título de um dos seus contos", etc., etc.. Ele tinha os defeitos de suas qualidades, o que, tratando-se de pesquisadores, é antes um mérito a elogiar. Em outra passagem, ele afirma que Machado de Assis aprendeu ou aperfeiçoou o seu francês "de ouvido", na companhia dos intelectuais com quem convivia, cabendo observar, antes de mais nada, que os seus conhecimentos sugerem claramente um aprendizado sistemático. É bem possível que haja aperfeiçoamento a gramática, a sintaxe e o vocabulário na companhia das atrizes francesas com quem conviveu intimamente (se assim me posso exprimir), confirmando o que já disse um malicioso, isto é, que a expansão da língua francesa entre nós se deve, acima de tudo, a duas corporações talvez antagônicas de mulheres, as freiras do Sion e as garotas do Alcazar Lyrique.

Este ultimo é objeto de longo verbete no dicionário de Ubiratan Machado, que, aliás, lhe nacionaliza o nome, o que, certamente, vai contra o espírito do tempo. Seja como for, escreve ele, o Alcazar Lírico [sic] era uma "casa de espetáculo, no estilo dos café-concertos franceses, fundada pelo francês Arnaud em 1857 [...]". Benemérito Arnaud, a quem muito devem a cultura brasileira e o refinamento dos costumes sociais (entre outros): "Viveu a sua fase de explendor a partir de 1864, quando contratou um grupo de artistas parisienses, como a graciosa Aimée, que mudaram os hábitos da sociedade carioca". É o caso de dizê-lo, mesmo lembrando o pudibundo Joaquim Manuel de Macedo, que o encarava como "teatro de trocadilhos obscenos, dos cancás e das exibições de mulheres seminuas", observação, esta última, que indica haver assistido a apenas uma parte do espetáculo.

Se há um verbete sobre o Alcazar Lírico ou Lyrique, faltam dois outros neste excelente dicionário, o que R. Magalhães Júnior certamente não perdoaria: um deles, sobre as biografias anteriores, e outro, não menos importante, sobre o próprio Magalhães. Em compensação, não falta o de Labieno, "pseudônimo com que Lafaiete [sic] Rodrigues Pereira publicou em janeiro e fevereiro de 1898, uma série de quatro cartas no Jornal do Commercio defendendo Machado dos ataques desferidos por Sílvio Romero", informação errônea proveniente de uma desleitura: só o primeiro dos artigos "defende" o romancista, enquanto os demais eram um ajuste de contas contra Romero, que o havia ferozmente atacado nos Ensaios de crítica parlamentar.

Jurista respeitado e severo, o que Lafayette menos desejava era ser tomado por um simples "literato", tanto que se deixou eleger a contragosto para a Academia Brasileira de Letras, sem tomar posse nem pronunciar o discurso protocolar de recepção. Josué Montello aceitava a hipótese levantada por Artur Mota, corroborando o que acima se afirma. E foi uma bela vingança, a começar pelo título: "Conhecemos o sacrificador bárbaro", escrevia num perfil devastador, "que veio lá das regiões Cimérias [...] sem embargo de longa residência na cidade conserva ainda muito da primitiva vegetação, fala uma língua dura, de uma gramática impossível, contaminada da ferrugem de aldeia [...]".

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