Das barrancas do Iguaçu em meados do século 19 aos esplendores da sede do governo no Palácio Iguaçu cem anos depois, a parábola romanesca de Fábio Campana, ligando as duas pontas da história numa geografia simbólica, acompanha, em paralelo, as vicissitudes da vida pública e as de uma família através dos tempos (Ai. Curitiba: Travessa dos Editores, 2007). Era inevitável que tudo se resolvesse num ajuste de contas com o passado (e o presente), com o destino e com a família, história de frustrações e ilusões perdidas, narrada em segmentos alternados, na primeira e na terceira pessoa.
Referindo-se em retrospecto à própria juventude, diz o Narrador: "Não posso amenizar a decepção de mamãe como costumava fazer, fingindo-me envolvido em grandiosos projetos. Ninguém mais aguarda a biografia de Cabeza de Vaca, a nova história da Guerra do Paraguai ou a pesquisa sobre a passagem da Coluna Prestes pela cidade. Até os quarenta anos, vá lá, mas depois dos cinqüenta passa a ser ridículo imaginar-se uma promessa. Tão ridículo quanto simular a juventude que se esvaiu, como fazem os velhos músicos das bandas de rock".
Aqui, a figura do Narrador se confunde com o Autor, pois esses eram os projetos do jovem Fábio Campana, que, aliás, realizou-os em parte, escrevendo um livro sobre o legendário conquistador espanhol (O último dia de Cabeza de Vaca, 2005), mito mental que o acompanha, se é possível que já tenha exorcismado o mito prestista de outras eras. Nesse painel, o romance é claramente autobiográfico: "Por que escrever a tese acadêmica em linguagem obrigatória que detesto? Na verdade, é a tentativa de escrever a minha própria história ou algo que a preencha" (sic). Ele é, embora falhado, o intelectual da família, enquanto o irmão é o homem prático, o político sem escrúpulos: "Creio que eu e Carlos pertencemos a uma geração que perdeu todas as esperanças logo depois do fim da ditadura militar, ao perceber que tudo mudara para não mudar coisa alguma" célebre frase de Lampedusa que, de resto, ignorava a lição de ceticismo do presidente Getúlio Vargas bem anterior ao filme que a popularizou.
É uma história de vencidos da vida, tal como Eça de Queiroz definia, em pleno fastígio, a trajetória de sua geração: "para um homem ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou mas do ideal a que aspirava". Assim, a visão do Narrador sobre os amigos de juventude: "É olhar para a turma e perceber que dela restaram apenas escombros e enorme dose de autocomplacência. Eu, que acredito que tenho todas as doenças menos a hipocondria, saía desses encontros com todos os sintomas descritos. Agora fujo. Não quero vê-los, muito menos saber de seus males... éramos puros e saudáveis. Agora exibimos desagradáveis tufos de pêlos saindo das orelhas... elas também não escaparam à erosão. As beldades de trinta anos atrás estão em ruínas [...]".
A essa corrupção física corresponde em simetria a corrupção moral dos novos tempos. A passagem dos anos também destrói as ilusões idealistas, como no diálogo dramático e desabusado do Narrador com o irmão Carlos, tornado "dirigente político que, segundo a lenda, manipula o poder nos bastidores e dessa condição retira fortunas que sustentam a sua vida de nababo". Em grande e em pequena escala, a vida pública norteia-se pelas normas da real-política, diz Carlos: "A política é uma coisa concreta e não obedece às tuas regras. Os carcereiros são concretos. Os deputados que recebem propinas, os negócios, o poder, o dinheiro, isso tudo é concreto no plano dos homens, não na atmosfera metafísica onde os fracos se escondem".
Quantas vezes ouvimos esse discurso cínico e oportunista? quadro que se repete em pequena escala na vida de família. O nome do bisavô, patriarca fundador nos confins do Alto Paraná, era dito "com solenidade e temor, mesmo pelos empregados que falavam dele às escondidas, rememorando as estórias sobre seus inconfessáveis costumes e sua parte com o demônio". Nos momentos de tédio e solidão, "transformava a casa em misto de bordel e café das artes, comandando a tertúlia e os desregramentos, sob o olhar e préstimos aquiescentes dos domésticos... Garrafas vazias rolavam pelo chão, vestes abandonadas... bêbados adormecidos sob as cortinas, sinais de vômito [...]".
Tudo isso a mais o passado desapareceu, com em maldição divina, sob as águas de Itaipu, represa encarada pelo Narrador com os olhos nostálgicos do Paraíso perdido, mundo ideal que desapareceu: "O rio, os peixes, os bichos e os homens e sua história ficaram aprisionados e submersos [...]". Aí se encontra, creio eu, o sentido do título, que eu, de minha parte, leio com um lancinante ponto de exclamação, Ai! metáfora do malogro em que se resolveu a vida do Narrador e sua fuga para Curitiba, onde continuaria a alimentar os mesmos sonhos de fascinante utopia.
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