Suassuna criou-se uma persona literária, sobreposta à sua pessoa civil: "Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta", imagens em que se reconhecem os tipos populares da Idade Média.

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Vivendo mental e emocionalmente no complexo de uma Idade Média legendária, Ariano Suassuna procurou reconstituí-la pela ideologia e pelas artes (Bráulio Tavares. ABC de Ariano Suassuna, Rio: José Olympio, 2007). Na ficção em prosa, sua carreira iniciou-se em 1956 com um pasticho de Béroul, lenda difundida pela Europa a partir de 1130 através de numerosas recopilações até chegar a Afrânio Peixoto, fonte imediata, segundo penso, de Ariano Suassuna, que a refere em A pedra do Reino. É um dos grandes mitos do amor no Ocidente, incorporado à música e às letras (Romeu e Julieta, La princesse de Clêves, e, claro está, a ópera de Wagner, que a tornou paradigmática).

A história de amor de Fernando e Isaura filia-se estilisticamente mais em Bernardo Guimarães (a começar pelo nome da heroína) do que em Béroul ou na ópera wagneriana. Na adaptação de Joseph Bédier reduziram-se os intermináveis 4.485 versos de Béroul (é o que resta do texto original), para nada dizer dos 31.550 versos de Thomas. É uma história trágica: il n’y a pas d’amour heureux. A partir daí, Suassuna mergulhou de vez na atmosfera medieval, com o teatro de feira popular (Auto da Compadecida); com a canção de gesta (O romance da Pedra do Reino) e com a ordem cavalheiresca do Movimento Armorial.

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Este último é de inspiração semelhante ao Félibrige da literatura francesa (1854) e ao grupo The Fugitives (1922-1925) na norte-americana, todos procurando recuperar o medievalismo mental, o culto da tradição (no singular) e os regionalismos de linguagem como valores autênticos. Apesar de apaixonadas reivindicações (Idelete Muzart Fonseca dos Santos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial, 1999), o projeto, com reduzido número de participantes, teve repercussão puramente local. No teatro, o Auto da Compadecida continua a ser uma peça emblemática, todas as subseqüentes sendo apenas variações sobre o mesmo tema, sem vigor dramático nem renovação temática. O problema, escrevi alhures, é mais complexo do que parece, porque, também do primeiro volume de A Pedra do Reino (1971) para o segundo (O rei degolado, 1977), ocorre a mesma queda de tono narrativo, passando da legenda para a história contemporânea: "cheguei à conclusão", declarou em entrevista, "de que o meu tempo psicológico não é mais o de hoje. As pessoas de hoje vivem num tempo, numa velocidade que aumentou e nem todo mundo lê livro grande".

Referindo-se ao que então tinha em andamento acrescentou: "dividi esse longo romance em vários romances, contos, e que podem ser lidos separadamente". Em outras palavras, esgotada a inspiração medieval, o que resta é A Pedra do Reino, obra paradigmaticamente suassuniana, simétrica ao Auto da Compadecida, todos livros vingadores e desmistificantes, ligados a tragédias pessoais e aos anos tumultuosos que preparavam a revolução de 1930. O Narrador se vangloria de haver criado um novo gênero literário, o "Romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja". E também de natureza picaresca na linha da literatura de cordel: "romance enigmático de crime e sangue, no qual aparece o misterioso Rapaz do Cavalo Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicações sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e Sinésio. Como seu Pai foi morto por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram o velho Rei e raptaram o mais moço dos jovens [...]".

Através do estilo picaresco, é na verdade, um romance histórico, biográfico e autobiográfico, dedicado à memória de João Suassuna (pai do romancista), assassinado no Rio de Janeiro por questões de política regional. Aí estão os Dantas, de um lado, e, de outro, os Pessoa, conjuntura sangrenta em que cada crime trazia o germe do seguinte. O projeto do Narrador era escrever a grande epopéia brasileira e nacionalista, "tendo como centro o enigma de crime e sangue a degolação de meu tio, Padrinho e pai-de-criação, assim como a encantação do filho mais moço dele, Sinésio Sebastião, o Alumioso". História ao mesmo tempo simbólica e milenarista, ligada aos episódios tenebrosos da Pedra Bonita um século antes – mas, ao realizar piedosa peregrinação ao local, o Narrador é surpreendido pela forma obscenamente fálica do rochedo sagrado.

Suassuna criou-se uma persona literária, sobreposta à sua pessoa civil: "Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta", imagens em que se reconhecem os tipos populares da Idade Média. Apesar das conotações cavalheirescas e monárquicas do Armorial, ele afirma nada ter de aristocrata, "sertanejo de quatro costados" como os senhores feudais que deixaram a tradição do heroísmo.