Em ensaio já antigo sobre o estilo de Euclides da Cunha, observei que, longe de refletir a paisagem sofredora que tinha diante dos olhos, ele a transfigurou numa visão apocalíptica; e, longe de se apresentar com um estilo que fosse a tradução dos agrestes e das caatingas, ele aparece como um alto representante do que a literatura já produzira de mais artificial, de menos espontâneo. Não é sem razão que Os Sertões o conduziram imediatamente à Academia Brasileira de Letras, nem jamais surpreendeu ninguém que esse solitário, tímido e agressivo tenha procurado e aceito a Academia como a consagração suprema de sua arte. Curioso: enquanto a Academia de Letras o recebia com entusiásticos louvores às qualidades sociológicas e nacionalísticas de sua obra, o parecer de Afonso Celso e outros, como Max Fleiuss e Melo Rego, que, em 1903, o recomendou à admissão no Instituto Histórico, acentuava que "em não raros trechos, Sertões [sie] apresenta o fôlego de soberba epopeia".
Ainda não se estudou o parentesco estilístico, quero dizer, psicológico, existente entre Euclides da Cunha e Victor Hugo, entre Euclides da Cunha e Luís de Góngora, entre Euclides da Cunha e todos os preciosos das grandes literaturas. Ora, esse parentesco não escapou a ele mesmo, que o exprimiu incidentalmente, talvez sem aquilatar-lhe completamente a significação. Foi numa carta de 19 de outubro de 1902 a Francisco Escobar, logo depois da publicação dos Sertões. Espantado com a multidão de erros de imprensa que tinha escapado à revisão, exclamava: "Quer isto dizer que estou à mercê de quanto meninote erudito brune as esquinas; e passível da férula brutal dos terríveis gramatiqueiros que passam por aí os dias a remascar preposições e a disciplinar pronomes!" Só essa preocupação de correção linguística, que se manifesta a cada passo em sua obra, já seria, de si mesma, suficientemente reveladora. Mas, eis o argumento que, de certa forma, o consola: "Felizmente disseram também que o Victor Hugo não sabia francês".
Assim, pois, ele tinha ideia, ainda que vaga e inconsciente, das afinidades de temperamento e estilo que o uniam à maior potência verbal da literatura francesa; e se talvez seja exagero dizer que Victor Hugo tenha disso o seu modelo, a sua grande admiração (o que, de resto, é ponto que bem merece elucidar-se), o fato inegável é que os associam tantas semelhanças íntimas que espanta não tenham sido até hoje suficientemente estudadas. Araripe Júnior, cujas virtudes críticas são escassas, acertou, contudo, quando via em Euclides da Cunha "um talento épico-dramático, um gênio trágico"; com efeito, é épica, dramática e trágica a sua visão do mundo [e, por consequência, a sua concepção do estilo].
Não há, para ele, homens nem acontecimentos medíocres, se a mediocritas, em sua exata significação, é a marca do que não é bom nem mau, do que está entre o bom e o mau, do que não é grande nem pequeno. A sua desmedida imaginação não via as coisas senão no extremo de todas as grandezas: soldados estropiados e jagunços depauperados transformam-se ao seu olhar em titãs, ou se transmudam em estátuas colossais que simbolizam e resumem as grandes virtudes da espécie; pequenos entreveros de combatentes exaustos são para ele cargas brilhantes de lanceiros da Índia; a humanidade só lhe oferece exemplos de vermes rastejantes ou de tipos excepcionais, encarnações de heróis celebrados por seu mestre Carlyle.
Daí, como já observei, o fato de que o seu estilo ser de natureza adjetival. Não somente ele tem o instituto do adjetivo, como, ainda, transforma em adjetivos todas as palavras, escolhe-as pelo potencial adjetivante que contenham; as suas imagens são sempre "qualificativas", e as palavras raras, em que tanto se compraz, não passam de outro recurso para adjetivar a frase. Bem entendido, um estilo dessa natureza não é, nem pode ser, espontâneo, embora seja, sem dúvida, instintivo. Euclides da Cunha "trabalhava" o seu estilo, sabia, claramente, que, em certo sentido, ele se acrescentava ao conteúdo, era a parte artística com que se traduzia o Fato. Assim, entre a primeira e as demais versões do livro várias correções manuscritas atestam a releitura estilística. Onde se encontrava: "noites perigosas das sexta-feiras", lê-se agora: "noites aziagas; "em outra frase a palavra "visões". muito banal, é substituída por "visualidades", para nada dizer do vocabulário propriamente dito: "provações" substituído por "flagícios"; "adoidados" por "insanos", "terras elevadas" por "altiplanos".
Tudo isso faz com que Euclides da Cunha tenha ficado, acima de qualquer outro, como o criador de um estilo. O autor e o livro logo se transformam em mito literário, e Os Sertões no livro nacional por excelência.
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