O estudo de Alberto da Costa e Silva sobre a África antes dos portugueses ( A enxada e a lança. Rio/São Paulo: Nova Fronteira/EdUSP) é um daqueles livros que já nascem clássicos, no sentido de que, situando-se no plano das grandes obras universais, conquistam desde logo um lugar permanente e definitivo em qualquer biblioteca de cultura. É uma história da civilização dos primórdios ao ano de 1500, pelas perspectivas em que a civilização precisamente se iniciou, se pensarmos que os "achados científicos apontam para a África do Sul do Saara como a região onde surgiu o homem o animal fazedor de instrumentos" – a que as civilizações por assim dizer necessariamente derivadas dessas épocas obscuras acrescentariam, aos instrumentos de domínio físico sobre o mundo físico, os instrumentos de domínio intelectual sobre o mundo, ou seja, a escrita e o livro.

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A intuição de Darwin sobre as origens do homem propõe a metáfora perfeita de todo o processo: "Cada espécie vai-se fazendo imperceptivelmente na que vai substituí-la. Por isso é que se diz nunca ter havido um primeiro homem". Tampouco existiu a primeira escrita, nem o primeiro livro, nem a primeira biblioteca: ao contrário do que se crê e escreve, os sistemas de escrita, de livro e de biblioteca não "evoluíram" uns dos outros, não se relacionam por derivações e aperfeiçoamentos sucessivos. Trata-se de invenções independentes entre si, assim como o automóvel não surgiu "por evolução" da carruagem de cavalos. Ninguém inventou a escrita: inventaram-se em lugares e momentos diversos (ignorando-se mutuamente entre si) os sistemas de escrita próprios e possíveis em cada civilização, tanto mais autônomos quanto nenhum deles poderia "adaptar-se" a tipos diferentes de mentalidade:

A "evolução" da escrita é uma vista puramente teórica e lógicaque se lança sobre episódios muitas vezes contemporâneos, masdesligados entre si. Nada indica, com efeito, que a escrita ideográ-fica tenha sido inventada por homens que não mais se satisfaziamcom a escrita pictográfica, e menos ainda que a escrita fonéticatenha nascido de uma consciência da insuficiência dos sistemasideográficos. Não há, entre esses sistemas, nenhuma sucessãonecessária no tempo. [...] E a prova é que até hoje sistemaspictográficos e ideográficos se perpetuam. [...] É importante,por conseqüência, abandonar de uma vez para sempre a idéiade uma "evolução" da escrita: há "evolução" dentro de cada sistema,maior ou menor conforme os casos, mas não de um sistema para outro.

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(W.M. A Palavra escrita, 1957)

Acresce que o processo civilizatório não é homogêneo nem contínuo, muito menos auto-aperfeiçoativo. Assim, cada "fase" não é necessariamente mais "avançada" do que as anteriores. Há quem pense, por exemplo, que, na Nigéria, a arte antiga de Ifé – povos a que Alberto da Costa e Silva dedica um capítulo – é mais "evoluída" que a arte negra contemporânea (v. Régis Debray. Vie et mort de l’image, 1992). O gráfico do processo civilizacional é irregular, incoerente e fragmentário. Alberto da Costa e Silva registra que a Núbia, recebendo o cristianismo, recuperou o uso da escrita após um hiato de 300 anos – não sendo, entretanto, em meroíta que se grafa, mas em grego, em copta e – o que é mais importante – em núbio antigo, que sintomaticamente adotara como forma escrita o alfabeto grego modificado, na sua forma copta, com a adição de três signos novos.

A história da civilização, na África ou em qualquer outro continente, é repleta de "talvezes", "hipóteses", "versões" e "conjeturas", não sendo, aliás, a escrita que haja eliminado todas as dúvidas (antes pelo contrário). Há avanços, mas há também inexplicáveis regressões ou persistências, como a violência que sempre acompanha a convivência. Nesse particular, os moradores do Rio de Janeiro poderiam adotar o modelo arquitetônico de habitação implantado na Núbia Inferior a partir do século XII:

As paredes engrossam. Os aposentos internos das moradas deixamde comunicar-se com a sala de frente: a eles só se tem acessopor um alçapão dissimulado no teto. A própria planta das habitaçõesvai-se complicando, seguindo uma inventiva guiada pela necessidadede ocultar e, possivelmente, proteger. As casas de dois andares,por exemplo, passam a não ter porta no rés-do-chão, mastão-somente no primeiro andar, a que se chegava por uma escadaretrátil. Subia-se ao primeiro andar, e dele se descia por umaou mais escotilhas, para o pavimento inferior. Tudo é cheio decâmaras escondidas, de passagens labirínticas, de quartos fechados.

Mas, claro, os nativos da Núbia Inferior eram uns bárbaros. Bárbara, igualmente, era a China, que dominando as navegações oceânicas desde o início do século XV, dispondo de melhores navios e ciência náutica mais adiantada, maiores recursos humanos e econômicos, destinava-se, em princípio, a ser "senhora do mar sem fim", em lugar e antes dos portugueses. Por uma espécie de "reserva de mercado" mental, o imperador Hung-Hsi, assumindo o poder em 1424, aboliu as viagens marítimas, assim liberando o país de todas as nefastas contaminações estrangeiras. Os chineses optaram pelo "imobilismo social e cultural", protegendo, "pelo isolamento, uma civilização requintada"; pode-se imaginar que também se livraram de tecnologias estranhas, criadas pelos bárbaros de além-mar. Os quais bárbaros, ao contrário, souberam incorporar muito bem, em proveito próprio, as tecnologias inventadas pelos chineses.

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