Vivendo agora sob uma república que nos envergonha e constrange, estamos na situação evocada pelo poeta: não há dor maior do que recordar os tempos felizes na miséria. Mas, quais foram esses tempos felizes? Segundo Luiz Felipe dÁvila, aqueles em que o Brasil "teve uma minoria esclarecida que se rebelou contra o populismo e lutou para construir instituições sólidas e governos democráticos. Essa minoria representa a elite virtuosa da nação. [...] Foram os Founding Fathers da República e tornaram-se exemplos de conduta pública e de inspiração política para gerações de brasileiros que sabem que a democracia só funciona numa sociedade em que as instituições públicas são fortes, confiáveis e capazes de transformar princípios em resolução de Estado e valores em decisões de governo". (Os virtuosos: os estadistas que fundaram a República brasileira, São Paulo: A Girafa, 2006).
Trata-se de uma reconstrução nostálgica e, por isso mesmo, necessariamente idealizante, com pouco fundamento na rude realidade dos fatos, acrescendo que extravasa, para o passado e para o futuro, a visão dos virtuosos: a crer em Luiz Felipe dÁvila, um deles foi o imperador Pedro II, o que, por um lado, afasta-nos dos patriarcas fundadores (o que, diga-se de passagem, é verdade histórica) e, por outro lado, demonstra que tais virtudes vinham da monarquia e de sua classe política (a que originariamente pertenciam os patriarcas republicanos), para afinal passar por lento e progressivo declínio no meio século que vai de 1870 a 1920.
Por inesperado paradoxo, o legado virtuoso da monarquia, representado pelo imperador e nele simbolizado, encontrou os últimos herdeiros nos patriarcas republicanos, os que, pela ordem natural das coisas, se encarregaram de dilapilá-lo. Pedro II, escreve o autor, "tinha plena consciência de seu papel civilizador", transcrevendo palavras do insuspeito Raymundo Faoro: "É o imperador que dá a nota e o tom a toda a época; é o símbolo da pirâmide e de suas camadas". Outros empoentes da civilização virtuosa, e dos mais representativos, haviam também formado o seu espírito e códigos éticos na época imperial: "Joaquim Nabuco, assim como Machado de Assis, acreditava que a virtude na vida pública consistia em transformar os valores morais em ação pública. A aristocracia tinha de servir de exemplo moral, cívico e público. [...] Escritores, jornalistas, servidores públicos tornaram-se grandes estadistas porque se submeteram aos rituais de passagem do mundo civilizado. Estudaram nas boas escolas e universidades [menos Machado de Assis, que era autodidata, observo eu], onde forjaram grandes amizades, freqüentaram os salões da aristocracia, onde refinaram o intelecto, os modos e os costumes".
Estamos longe, como se vê, dos patriarcas republicanos, que, ao oposto dessa visão sublimadora, se é verdade que passaram por boas escolas, iniciaram o rápido processo democratizador dos salões: muitos deles, e dos mais conhecidos, eram assíduos nos bordéis de alto luxo e nas mesas de jogatina. Tendo por objeto os virtuosos de nossa vida pública, é inegável que o livro não se limita aos fundadores, dentre os quais o autor enfatiza sub-repticiamente a personalidade de Prudente de Morais, ao lado e um pouco acima de Campos Sales e Rodrigues Alves, perspectiva oposta à de Afonso Arinos na biografia deste último. Deve-se-lhe o registro malicioso de que os melhores presidentes da República foram os antigos conselheiros imperiais.
Mais ainda: presidentes paulistas, porque, afinal de contas, a força dos acontecimentos levou-os a consolidar a República civil, se é certo, como querem as verdades aceitas, que caberia a Floriano Peixoto consolidar o informe embrião militar em regime político viável. Contudo, e do ponto de vista intelectual e doutrinário, Rui Barbosa seria o verdadeiro patriarca republicano, vencido e frustrado, como é do destino dos visionários. Ele se dizia "republicano de 16 de novembro", porque, no seu espírito sistemático (não menos teórico que qualquer outro), teria sido possível salvar a monarquia in extremis se a classe política imperial, esclerosada nos seus anacronismos e dominada pelo terror cósmico (para lembrar a sugestiva expressão de Graça Aranha) tivesse aceito o federalismo como fórmula salvadora por ele transformada em idéia fixa. A República, se fosse virtuosa, teria adotado como própria a sua profissão de fé: "Creio na liberdade onipresente, criadora das nações robustas; creio na lei; creio que, neste regime, soberano é só o Direito, interpretado pelos tribunais [ele falava em outros tempos...]; creio que a República decai, porque se deixou estragar, confiando-se às usurpações das forças; creio que a Federação perecerá, se continuar a não acatar a Justiça; creio no governo do povo pelo povo; creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque acredito no poder da razão e da verdade". Podemos pensar que o segredo do bom governo está nos conselhos de Dom Quixote quando Sancho Pança ia assumir o poder na Ilha da Barataria...
Luiz Felipe dÁvila assinala com razão o marco histórico, a ruptura essencial que ainda estava à espera de reconhecimento: "A República dos Conselheiros acabou com o malogro da campanha civilista. O movimento civilista surgiu durante a campanha presidencial de Rui Barbosa em 1909. Foi o último esforço da geração dos fundadores da República de renovar o sistema político por meio do voto democrático. A partir de 1910, o enrijecimento do sistema político e sua incapacidade de se renovar levou-o à atrofia e ao imobilismo. A República dos Conselheiros transformou-se na República dos oligarcas".
Na verdade, todos os regimes políticos, monarquistas ou republicanos, ditatoriais ou democráticos, parlamentares ou presidencialistas, encontram nas oligarquias a sua fonte de vida, espécies visíveis e organicamente inevitáveis, forma única de existir e atuar. Os oligarcas são a face viciosa da moeda em que do outro lado está a figura dos virtuosos, são a forma orgânica do poder. Se o poder corrompe, como já se disse e é inegável, nada se pode fazer. São contingências da vida pública, onde tudo começa em mística para terminar em política, segundo o pensamento desenganado de Charles Péguy.
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