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A história romanceada de uma família (real) durante quatro séculos de vida brasileira (Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque. Memórias de Isabel Cavalcanti. Recife: Bagaço, 2006) acrescenta-se às histórias romanescas de legendárias famílias fictícias – os Rougon-Macquart, os Buddenbrook, os Thibauld, os Malavoglia... Não se trata de distinções especiosas: na história romanceada as peripécias inventadas são subsidiárias dos fatos verdadeiros, enquanto nas histórias romanescas a construção imaginária determina e condiciona a matéria real. Ou, como dizia Alexandre Dumas, mestre dos mestres, "a história é apenas o prego em que penduro os meus quadros".

Fazendo parte, ela própria, da família aristocrática cuja existência através dos séculos decidiu celebrar (porque o livro, antes de mais nada, é a celebração idealizante dos seus heróis e heroínas), a autora sacrificou desde logo a objetividade narrativa, elemento essencial da espécie. Esta é, pois, a saga da família Cavalcanti ou, nas palavras de uma figurante, a história do "espírito dos Cavalcanti e do gênio dos Albuquerque", unidos para produzir "a prole mais perfeita". Será, certamente, o que os Cavalcanti pensam deles mesmos porque a norma determinante de suas vidas são os rigorosos escrúpulos de pureza racial.

É livro para ser lido com o lápis na mão para evitar inevitáveis extravios e confusões através das suas tabelas genealógicas, tanto mais que os nomes próprios repetidos de geração em geração aumentam ainda mais a perplexidade do leitor. Pelo artifício das cartas escritas por Gertrude para a "senhora dona Isabel" (sem que se saiba, a essa altura, de que Isabel se trata). Compreende-se afinal (já nas ultimas páginas) que "a narrativa atravessa, pelo menos, quatro séculos", com o defeito, na observação de um leitor anônimo, de ter "um único tom para épocas, personagens e problemas diferentes. [...] Os personagens do século XVII não são muito diferentes dos séculos posteriores". De fato, é uma narrativa "muito linear" a que fala a quarta dimensão: o Tempo. Sem isso, nossa sensação psicológica é a de que as diversas Isabéis, os Antônios, as Catarinas e os Pedros são contemporâneos contracenando na sala da casa-grande. O romance, ou "novela", como o qualifica a autora, é um pouco a "ilustre Casa de Ramires" em versão pernambucana: "Éramos nobres mesmo antes de nos chamarmos Albuquerque. Descendemos de dom Alboázer Ramires (sic), filho de el-rei Ramiro II. A essa Casa pertenceu Teresa de Albuquerque, filha de Afonso Menezes de Albuquerque e de Teresa Sanches, filha de Sancho IV, de Castela, que reinou em torno de 1280" ... daí saindo a árvore genealógica em que se funda o orgulho nobiliárquico.

Também aqui ocorre o fenômeno da influência gravitacional de uns personagens sobre outros: a árvore genealógica "inicia-se em 1770. Borges da Fonseca e João Clímaco de Araújo são as minhas fontes principais", diz a primeira genealogista, porque, à diferença dos troncos naturais, os galhos dos genealógicos tendem a rivalizar entre si: "Os Cavalcanti daqui, com tanto sangue Correa de Araújo em suas veias, acusam-nos de nascimento menos fidalgo. [...] Nós, que somos os legítimos descendentes dos senhores do engenho Poeta, visconde de Camaragibe! São muito petulantes esses Cavalcanti, orgulhosos de suas remotas raízes [...]. Esquecem esses Cavalcanti que o nome Correa de Araújo é tão antigo quanto o Albuquerque".

Os leitores da Cavalcanti de Albuquerque que escreve este livro reivindicativo estarão certamente lembrados do romance an-terior em que descrevia a inimizade de morte (e com mortes) entre os Cavalcanti e os Correa de Araújo, convindo consultar as informações nobiliárquicas esparsas pelo volume como flechas orientadoras. A verdade é que os Cavalcanti também receberam a transfusão do mais legítimo sangue aristocrático: "Dom Jerônimo, meu pai, já havia falado dele a dona Beatriz. Tinha lhe contado que havia empregado... um florentino es-quisito, sempre muito limpo... Meu pai estava ainda mais intrigado com o que acontecera no dia anterior: um outro estrangeiro... ao avisar o florentino, correu para beijar-lhe as mãos. Quando interrogado, informou que cumprimentara um nobre florentino".

Era o prometido do destino para Isabel Cavalcanti: "Anunciado pelo criado [sic, à moda européia, e não por um escravo] entrou fulgurante, o passo elegante, os gestos exagerados, desmanchando-se em mesuras graciosas. Saudou-nos com uma reverência tão acintosa que seu chapéu de abas largas voou junto com sua mão e roçou o piso poeirento [sic!]. Fez-se conhecer pelo nome de Felipe Cavalcanti". Cena de cinema contada à neta Isabel Cavalcanti pela avó Catarina, a Velha, que , aliás, também podia se orgulhar de sua nobreza, sendo neta, por sua vez, do cacique Arcoverde, de gloriosa progênie – prova de que os aristocratas sabem criar os seus próprios títulos nobiliárquicos.

Com clarividente sutileza, a primeira Catarina preparava a neta para casar com Felipe Cavalcanti: "Logo após aquela conversa em que dona Beatriz falou da necessidade da beleza, casei-me com Felipe Cavalcanti. Ele era um homem de muitas letras. Falava latim, traduzindo para mim partes da missa, Escandalizava as outras mulheres nobres que, na época, só ocupavam as duas primeiras filas da Igreja. To-mou-se de grande paixão por esta terra. Nela construiu uma grande fortuna. Incomodou-se apenas com os pomposos títulos militares que lhe foram impostos por meu pai". Venturosa Isabel!

Percebe-se que, houvesse adotado a visão dramática (ou se pudesse tê-la adotado), em lugar da visão celebratória e idealizante (para nada dizer dos evidentes propósitos reivindicativos), este poderia ter sido um dos possíveis grandes romances da formação brasileira, condicionada pela sacralidade dos valores trágicos: a terra, o sangue e os mortos. Os Cavalcanti e os Albuquerque, os André Vidal de Negreiros e os João Fernandes Vieira foram atores necessários e complementares da mesma comédia humana. Viveram uma mudança de idades sociais, marcada pelos acontecimentos: a invasão holandesa, que trouxe a civilização urbana àquele meio rural e arcaico, mais a guerra dos mascates, introduzindo figurantes inteiramente diversos.

Concomitantemente, e no outro prato da balança, prosseguia a inelutável decadência da sociedade representada pelo "espírito dos Cavalcanti e pelo gênio dos Albuquerque", porque história é movimento e mudança. Um personagem refere-se a "todos os defeitos dessa nobiliarquia decadente", avesso da brilhante tapeçaria tecida pelos Cavalcanti para eles mesmos. Na sucessão aparentemente caótica dos fatos, podemos tomar dois vultos reais como representativos da substituição de paradigmas: André Vidal de Negreiros, sobrevivente do mundo que se desfazia, e João Fernandes Vieira, que, execrado pela autora, foi designado pelo destino para matar um Cavalcanti, crime ritual cuja simbologia não devemos ignorar: era a sociedade nova que se iniciava.

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