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Afinal, para que servem os críticos? Para nos ensinar a ler literatura, o que é diferente da leitura comum. Vista em conjunto, e como qualquer outra atividade intelectual, a crítica é um exercício de tentativas e erros, todos respondendo aos códigos canônicos de cada momento: há erros úteis e necessários, aqueles que, justamente, permitem perceber as verdades que os contradizem, muitas vezes condenadas, por sua vez, a se tornarem erros no movimento dialético da inteligência. A "verdade" crítica é o sedimento que se deposita no fundo do vaso a partir dos juízos contraditórios que se sucedem ao longo dos anos: é uma "verdade" coletiva e aceita.

Tendo por missão ler as "obras-primas que poucos leram" (Heloísa Seixas, org. Vols. 3/4 Rio: Record, 2006), os críticos são, como ficou dito, os mestres da leitura literária. Eis, por exemplo, Otto Maria Carpeaux e a Divina comédia, do "único poeta do mundo que mereceu o título de altíssimo... Sua glória não pertence a uma cidade ou a um povo. O seu grande poema, tido como impenetrável, é uma construção sólida cuja beleza facilmente se desvenda. Dante deu-lhe o título de Comédia, ao que a posteridade acrescentou o adjetivo Divina, "não por causa do conteúdo, mas por motivo da perfeição da obra, perfeita quase escolasticamente com seu canto introdutório e os 33 cantos de cada uma das partes, e todos esses cem cantos escritos no metro da terza-rima, cujo esquema de rimas não permite que se tire ou acrescente um único verso".

É um monumento de estrutura poética, unitário e maciço, no qual cada parte responde pelo equilíbrio das outras e do conjunto. Em Shakespeare como em Camões coloca-se o intrigante problema, aliás insolúvel, da bagagem intelectual. Pouco ou nada se sabe a esse respeito, tratando-se de autodidatas na hipótese mais favorável. Shakespeare "não era um ignorante, mas sabia latim, francês, italiano e muita história". Mas há o testemunho maledicente de Ben Jonson: "sabia pouco latim, e grego menos ainda". Eminente plagiário, procurava "histórias, biografias, novelas, romances interessantes para transformá-los em dramas de que o público de Londres gostaria. As mais das vezes estava com pressa, não tendo tempo para fazer muitas modificações. Em certos casos, suas fontes eram tão boas que não custava muito dramatizá-las: então acompanhou-as fielmente, mudando apenas os nomes de certos personagens, talvez para ocultar a origem dos enredos. Contudo, sempre fez pequenas modificações, acrescentando isto e suprimindo aquilo".

Ainda mais problemático é o caso de Camões, de quem Irineu Guimarães diz, sem pestanejar, que "tinha uma erudição assombrosa. Assimilara todo o acervo cultural da antigüidade clássica e todos os conhecimentos científicos e humanísticos da Renascença: Náutica, Astronomia, Mitologia, História, Geogra-fia, Flora etc., e toda a alta tradição literária das grandes escolas". Assim é se lhe parece, mas não tantas, nem tão peremptórias, são as certezas dos especialistas. Há quem pense que foi sobretudo um leitor de almanaques, sem exclusão, bem entendido, de algum livro que lhe caísse nas mãos. É certo, entretanto, que jamais seguiu cursos regulares e formais, exatamente o contrário do Pe. Teilhard de Chardin, a quem chegamos com um salto prodigioso através dos séculos para encontrá-lo naquela parte do mundo em que Camões escreveu Os Lusíadas. A aventura filosófica de Teilhard de Chardin levou-o ao que chamava de evolucionismo cristão, condenado, entretanto, pela Ordem a que pertencia e pelas "duas correntes católicas... embora por motivos diferentes. Os conservadores o detestam", chamando-o de charlatão e cabotino, enquanto os progressistas consideram-no "ambíguo demais para as necessidades de sua propaganda [...]". Foi, afinal, condenado a um "silêncio obsequioso" a que se submeteu com humildade, sendo póstuma a publicação de O fenômeno humano, sua obra fundamental.

Três séculos antes, Descartes fundara o racionalismo, propondo-se a demonstrar a existência de Deus, não pela fé, mas pela Razão. É certo que achou mais prudente mudar-se para a Holanda, terra onde àquela altura se refugiavam os heterodoxos de todos os matizes. O bom-senso, dizia ele, é a coisa do mundo mais bem distribuída, porque ninguém jamais se queixou de não possuí-lo em quantidade suficiente. Palavras com que, justamente, iniciou o Discurso do método.

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