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O socialismo não é uma idéia política – é um sentimento místico que está para as idéias políticas como o misticismo propriamente dito está para as religiões estabelecidas, igualmente divididas em partidos e ideologias dogmáticas. Curioso, embora facilmente compreensível, é o fascínio que exerce sobre os intelectuais, compensação instintiva para o que têm de céticos e racionalistas. Daí o seu tropismo pelos regimes autoritários de esquerda e direita, semelhantes e indistinguíveis na prática, para além das etiquetas convencionais. Apesar das aparências e dos pressupostos, pertencem ao partido da Autoridade, não ao partido da Liberdade: os espíritos liberais são autoritários por temperamento. Promete-se o "verdadeiro" socialismo, por oposição ao socialismo "real", para as manhãs radiosas do futuro, para a idade escatológica em que se instituir o Paraíso.

Enquanto isso, são peregrinos políticos, entregues a sucessivas romarias aos lugares sagrados, sempre substituídos ao embate com as inevitáveis desilusões da cruel realidade (Paul Hollander. Political pilgrims, 1981). O médico brasileiro Osório César que, em companhia de Tarsila Amaral, tomou parte na peregrinação de 1932 à União Soviética, não apenas informou que uma usina siderúrgica em construção era mais importante que as congêneres norte-americanas em funcionamento, como não escondeu o assombro pela façanha do colega soviético que curava o câncer em três meses, proeza comparável à que foi testemunhada em Cuba por Antônio Cândido: a realização quase miraculosa [sic] de uma terapia redentora para as moléstias mentais". Até o vocabulário é religioso. (Recortes, 3ª ed., 2004).

Sendo uma "viagem programada", como é próprio das excursões turísticas, ele acrescenta, sem necessidade, que as suas "experiências se concentraram nos aspectos positivos do país". Assim mesmo, o intelectual Antônio Cândido retomou, aqui e ali, os seus direitos: "Não é positivo saber que há intelectuais sofrendo sanções por delito de opinião, nem ver que os nomes de escritores infensos ao regime, cubanos e estrangeiros, são omitidos nos jornais em contexto puramente literário; e a imprensa em geral é insípida". Que maneira delicada de dizer as coisas! – se for permitido evocar Molière sobre a hipocrisia em contexto de tanta gravidade.

De fato, segundo Antônio Cândido, não haveria necessidade de prender e castigar escritores, além, por isso mesmo, de privá-los dos meios de subsistência, "porque Cuba possui uma tal abertura mental, uma tal universalidade de experiências, ao lado da serena autoconfiança nacional, que a discordância seria perfeitamente digerível. [...] O país que nunca oficializou cânones estéticos nem adotou o realismo socialista, que cobre as paredes dos prédios públicos com quadros de tendências mais diversas; que pratica o experimentalismo na música e produz os cartazes mais livres e bonitos que se podem imaginar – tal país não precisa proscrever livros, temer os críticos ou fazer dura a vida dos intelectuais em desacordo".

Não precisa – mas proscreve livros, pune críticos e persegue os dissidentes. É um terreno minado onde nem sempre encontramos os aliados que imaginávamos: Carlos Lacerda, por exemplo, justificava a execução sumária dos adversários ideológicos de Fidel Castro, tranqüilizando, dizia ele, "os timoratos leitores de jornais e as almas ingênuas que se ofendem com os anunciados fuzilamentos e não vêem, ou preferem não ver, as iniqüidades que destróem mais do que a vida e os ultrajes que lhe ferem as próprias fontes [...]."

Quanto ao "país que nunca oficializou cânones estéticos", cabe lembrar as canônicas "Palavras aos intelectuais" dirigidas por Fidel Castro aos autores e artistas reunidos de 16 a 30 de junho de 1961: dentro de la Revolución, todo; contra la Revolucíón, nada. ?Quiere decir que vayamos a decir aqui a la gente lo que tiene que escribir? No. Que cada cual escriba lo que quiera, y si lo que escribe no sirve [...]." Ou, para bom entendedor: escreva o que quiser, mas por sua conta e risco. Isso era dito no mesmo momento em que os diretores de Lunes (Guillermo Cabera Infante, Pablo Armando Fernández e Heberto Padilla) estavam sob interrogatório num tribunal do Partido Socialista Popular.

É certo que muitos escritores cubanos rejeitavam o realismo socialista, embora as palavras de Fidel Castro implicitamente o recomendassem. Seymour Menton registra que a denúncia mais categórica foi feita por Edmundo Desnoes: "Toda literatura que não aprofundize ou enriqueça a vida do homem converte-se em uma estafa. A arte como instrumento de propaganda ou como profecia tende a desvirtuar sua natureza: é uma arte alienada. A literatura só pode estar a serviço da visão do artista". (Caminata por la narrativa latinoamericana, 2002).

Chama-se Memórias do subdesenvolvimento o romance mais famoso de Desnoes, cujo herói não tem nenhuma fé na Revolução: "Todo o talento do cubano gasta-se em se adaptar ao momento. Às aparências. O povo não é consistente, conforma-se com pouco. Abandona os projetos pela metade, interrompe os sentimentos, não acompanha as coisas até às últimas conseqüências. O cubano não pode sofrer por muito tempo, sem cair na risada [...]. Fidel será assim? Não me parece, mas...". Esta conjunção não aparece nunca nos textos dos peregrinos, almas imunes à dúvida e às contradições. Mas não ao constrangimento quando lhes caem as escamas dos olhos, para empregar a linguagem bíblica apropriada a este contexto dominado pelo misticismo.

Chegado, ao que parece, o momento dos balanços dramáticos e dos ajustes de contas em família, Edmílson Caminha reuniu em "leitura comparada" alguns depoimentos de Peregrino brasileiros (Brasil e Cuba: modos de ser, maneiras de sentir. Brasília: The saurus, 2006). Esses e os demais testemunhos de fé são qualquer coisa como o Livro dos mortos, ritual funerário no qual os antigos egípcios reuniam encantações, orações e exorcismos destinados a servir de guia para os viajantes do outro mundo.

É também o livro das lamentações e do arrependimento, cabeças cobertas de cinzas, autoflagelações penitenciais. Todos escrevem sobre um país de ficção, reconheceu Antônio Callado com um sorriso amargo no seu diário de viagem.

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