Eis o jovem crítico sob as espécies de jovem poeta? "sou um poeta bissexto", declarou em entrevista ao jornal literário Rascunho em 2003, pertencendo à nobre família dos que, no dizer de Manuel Bandeira ao incluí-los numa galeria hoje clássica, "só entram em estado de graça de raro em raro" (Miguel Sanches Neto. Pisador de horizontes. (Poemas 1985-2005). Ponta Grossa, PR: Editora da UEPG, 2006). Bissexto, escreveu Vinicius de Morais, "é um Pedro Dantas, cujo poema A cachorra passou a ser uma obra-prima da literatura brasileira. O mesmo se pode dizer de O defunto, de Pedro Nava, uma das peças mais belas e mais sinistras da nossa poesia. Bissexto é um Aníbal Machado, escritor esporádico, em quem o verso é uma espécie de estado de graça que assoma entre largo período de sombra, um Dante Milano, notável pela unidade de sua forma poética, de grande pureza; um Joaquim Cardozo, cuja produção se recusa à intimidade dos que lhes são mais chegados, tão íntima quer ser; um José Auto, poeta que, se tem dez poemas, terá muito, mas em quem poesia é uma fatalidade de condição".
Vê-se que Miguel Sanches Neto está em boa companhia, bem mais honrosa e selecionada que a dos abundantes, muitos dos quais só passam por poetas por escreverem versos, à diferença dos que escrevem versos por serem poetas, segundo o conhecido epigrama de Thibaudet. Vinicius de Morais caracterizava os bissextos por serem "poetas sem livros", do que Manuel Bandeira discordava, e com razão: "nego que a circunstância de não publicar em livros ou em revistas e jornais seja característica essencial do bissexto. O essencial é a produção rara". Produção rara e inquietude espiritual, acrescento eu, a exemplo de Miguel Sanches Neto, que revela a existência do "poetinha encalacrado" que existe dentro dele: os meios da prosa são diferentes dos meios da poesia, disse esse prosador de alto gabarito que "nunca teve coragem para matar o poetinha", cometendo sempre "alguns poeminhas". Tomemos os diminutivos como expressão irônica de modéstia, porque, na prosa como na poesia, a ironia é o condimento do seu espírito, sem prejuízo da inclinação nostálgica e memorialística que lhe completa o perfil de escritor.
Em entrevista anterior ao mesmo jornal, ele revelou ser "poeta apenas no momento em que escreve poesia, coisa que acontece com pouca freqüência, não muito mais do que uma dúzia de vezes ao ano. [...] Ou seja, não sou poeta 24 horas por dia, sete dias por semana. [...] Eu sou apenas um leitor que tem síndrome lírica passageira". E, como o jornalista perguntasse de que maneira isso se reflita na sua poesia: "Principalmente em um estilo que fica a meio caminho entre o poético e o prosaico. Em meus poemas não uso formas fixas (mesmo nos que aparentam ser sonetos), evito versos extremamente melódicos, fujo da rima soante, me entregando à toante, que é um parentesco fônico incompleto. Outra coisa importante nesta minha maneira de fazer poesia sem incorporar o poeta é uma visão bastante crua e desencantada, expressa em versos que cultivam certo rudimentarismo".
Tudo isso concorria e concorre para incluí-lo definitivamente entre os bissextos, com momentos de renúncia: "Há anos estou decidido a não escrever poesia. Mas, mesmo contra minha expressa proibição, vez ou outra um poema fura a barreira de proteção e entra em minha vida. [...] Todos os poemas de Venho de um país obscuro nasceram contra a minha vontade, eu jamais me sentei ao computador e pensei vou escrever um poema assim e assado. Eles vieram de um jato, interrompendo um ou outro serviço, me tirando mais cedo da cama, da mesa de jantar, do banho. Todos os meus poemas são frutos de um estupro no qual eu fui a parte passiva".
A nota editorial desse volume (Bertrand Brasil, 2005) apontava para a obsessão memorialística como "centro de uma poética em que o biográfico não pode ser lido de forma simplista, pois ele é também construção ficcional, o que fica patente no fato de o livro ser dedicado à memória do próprio poeta, que com este recurso, se revela cindido, no papel de autor e personagem". Trata-se de uma dedicatória sardônica Para Miguel Sanches Neto, in memoriam" em tudo oposta à autodedicatória "ao mestre querido" com que Mário de Andrade entregava Paulicéia desvairada, livro inaugural que, ao contrário, iniciava deliberadamente uma carreira de poeta. Em Miguel Sanches Neto, a memória é, antes de mais nada, e quase exclusivamente, a nostalgia da infância, país perdido nas brumas do passado. Ele é o "Nômade" existencial: "Vivo preso ao fato / de não estar preso a nada / não é meu este chão / nem mesmo são minhas estas pegadas". Ou então, ainda mais confessional: "Postaram minha vida pro futuro / sem sequer definir o rumo // quando, extraviado, / quis voltar ao princípio / não havia o endereço / do remetente longínquo".
Em outro poema, intitulado "Itinerário", ele escreve: "Há uma porta por abrir / mas meu braço não alcança / E o trem pro meu destino / descarrilou na infância". É menos surpreendente do que parece encontrar em forma de poema o inesperado desencanto com a atividade crítica: "São horas de parar / no relógio cansado do crítico. [...] Nunca mais ler um poema / sem nenhum outro motivo / do que o de querer / provar do seu visgo [...]. O poeta morreu lúcido, / catalogando delírios". De fato, os críticos passam boa parte do tempo lendo poesia de má qualidade, com o resultado de mergulhar no tédio tanto da poesia quanto da crítica. O que os salva e salva Miguel Sanches Neto é, justamente, o espírito crítico, a ironia compensatória, vingança da literatura contra a subliteratura. Esse é o outro lado do poeta Miguel Sanches Neto, como no poema "Rua dos Funcionários", endereço da Imprensa Oficial do Paraná, que dirigiu durante algum tempo, com as frustrações burocráticas fáceis de imaginar: "Rua que não desejei. / Também não me desejaste, eu somente fiz as vezes / do amado meio mascate. // Minha mala sempre pronta, a partida programada [...] Não foste de fato rua, / quarto de hotel talvez [...]".
Assim se marcou a vida do poeta, pelos sinais do caminho, desde o país obscuro da infância aos itinerários diversos que percorreu como nômade.