Era um poeta que falava em "equadores", "infinitos" e manadas de borboletas, com incontáveis incorreções métricas e lingüísticas, expressando-se num vocabulário retórico em tudo oposto à secura programática da poesia nossa contemporânea... e, contudo, escreve Alberto da Costa e Silva, o povo "fez do jovem baiano o paradigma do poeta. Na visão popular, durante muito tempo, e em alguns lugares até hoje, um poeta é um rapaz magro, de basta cabeleira ondulada, rosto pálido, olhos brilhantes, voz sonora, mão longas e gestos amplos. À imagem e semelhança de Antônio Frederico de Castro Alves" (Castro Alves. São Paulo: Companhia das Letras, 2006).
E estava certo quando exclamava: "Eu sinto em mim o borbulhar do gênio". Na verdade, a figura prototípica do Poeta foi criação da época romântica, encarnada à perfeição por Castro Alves, mas não bastavam aquelas condições: era preciso ainda pertencer à juventude inspirada e efêmera, ser, por assim dizer, o escolhido e o condenado dos deuses. No Brasil daquela época, escreve ainda Costa e Silva, "quase que se esperava que um poeta morresse jovem. E os românticos cumpriram o vaticínio. Francisco Bernardino Ribeiro foi-se aos 22 anos; Dutra e Melo também; Álvares de Azevedo, antes de completar 21; Junqueira Freire, aos 22 e meio; e Casimiro de Abreu, com quase 22. Alguns viveram um pouco mais: Aureliano Lessa, 33 anos; Fagundes Varela e Laurindo Rabelo, 34; Paulo Eiró, 35, dos quais o último lustro num hospício. Poucos passaram dos quarenta, como Gonçalves Dias, que morreu com 41 num naufrágio".
Era também esperado que, além de curtas, essas vidas viessem envoltas em tragédia. O lugar-comum crítico e historiográfico vê em Castro Alves o "poeta dos escravos", invertendo as perspectivas do seu tempo, o tempo que preferia abafar em silêncio tácito um aspecto da obra extremamente constrangedor àquela altura. Ele se tornou "poeta dos escravos" depois das comemorações do decenário, quando a idéia abolicionista já estava madura, e pela palavra prestigiosa de Rui Barbosa, que, no discurso da Bahia, enfrentou o duplo problema de, por um lado, metamorfosear em "poeta dos escravos" um escritor em cuja obra o tema aparece em proporção relativamente insignificante, e, por outro lado, de apresentar como "poeta social" o vate que, ainda na década de 1870, prolongava o romantismo byroniano e huguesco, mais do que antecipava a poesia realista e de combate.
Como seria de esperar, o orador saiu-se magnificamente da empreitada, ao mesmo tempo em que contradizia as verdades aceitas: negou a ortodoxia romântica de Castro Alves, conduzindo a exposição de maneira que a poesia abolicionista, longe de parecer afogada e diluída no conjunto, surgisse antes como triunfante e esplêndido coroamento de toda a obra. (W. M. História da inteligência brasileira, IV, 2ª ed., 1996). É inegável, entretanto, que, nessa poesia, o escravo é uma figura perfeitamente simétrica à do índio nos romances de José de Alencar: no que se refere à psicologia de leitura, são tipos idênticos.
Nas palavras de Costa e Silva, "o escravo será sempre, em Castro Alves, devotado aos seus, nobre, altivo, valente e reto. Na maioria dos casos, um resistente, um inconformado, um vingador, um rebelde". A África, de seu lado, era nele uma figura de espírito, mais imaginária que real; a paisagem em que insiste "é a do deserto, como se todos os escravos viessem do Saara ou de suas franjas. No próprio O navio negreiro, depois de perguntar-se quem eram aqueles desgraçados, responde que eram os filhos do deserto, nascidos nas areias infindas e que, capturados, haviam sido levados pelas caravanas por um areal extenso, um oceano de pó ". Isso em nada o diminui como poeta, e é dito apenas para notar que as verdades aceitas, e aceitas sem maior exame, são verdades poéticas e generosamente humanas. Sua África "é uma África dramática, desolada, desesperada, mas que pouco tem a ver com as terras de onde foram arrancados os escravos que penavam no Brasil".
De qualquer maneira, Rui Barbosa, companheiro da repúplica estudantil nos anos de formação (maravilhoso encontro!), representando, ele mesmo, uma nova idade de nossa civilização, reivindicava a glória do poeta sem esconder que, na sua obra, a poesia dos escravos era composta de fragmentos: "Possuamo-nos, senhores, agora da alma do poeta, para penetrar nessa galeria de fragmentos admiráveis... que, não obstante, ficará sendo no Brasil o poema dos escravos". A idéia abolicionista data de 1881 e dessas palavras, sendo então mais importante que a poesia de Castro Alves, visto, em retrospecto, como a figura emblemática do movimento. Colhendo, uma a uma, as passagens esparsas, Rui Barbosa transformou-as em marcos miliários, transmitindo para a posteridade com essas disjecta membra a imagem que dele ficou para sempre. De fato, a glória é o conjunto de mal-entendidos que se acumulam em torno de um nome.
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