Releituras recentes introduziram novas perspectivas para o julgamento intelectual de Gilberto Freyre, sem em nada lhe diminuírem, bem entendido, a grandeza e a importância. Nessas perspectivas, tornam-se elemento essencial para a configuração do homem e da obra as páginas, agora reeditadas, do "diário de adolescência e primeira mocidade" (Tempo morto e outros tempos. 2.ª ed., rev. Apresentação de Maria Lúcia Pallares-Burke; biobibliografia de Edson Nery da Fonseca. São Paulo: Global, 2006).

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Apresentadora e bibliógrafo são dois gilbertianos acima de qualquer suspeita e este, dentre todos, bem pode ser visto como o livro gilbertiano por excelência, tanto no que tem de autêntico quanto no que tem de apócrifo: é o Evangelho de Gilberto Freyre segundo Gilberto Freyre. Ele mesmo tinha plena consciência dessas singularidades: "Não me humilharia o fato de ser autor de um livro que provocasse... comentários superiores ao próprio texto. Na verdade, não me atraem os livros completos ou perfeitos, que não se prolongam em sugestões capazes de provocar reações da parte do leitor e de torná-lo um quase colaborador do autor".

É irônico que, com tais palavras, ele tenha dito mais do que pensava ou desejava, pois a verdade é que transformou, deformando, o que deveria ter sido um diário, de alto valor documental, contemporâneo das anotações, em memórias substancialmente reescritas com entrelinhas e adendos "atualizadores", mesmo ao preço despercebido de inegáveis anacronismos. No comentário de Maria Lúcia Pallares-Burke: "em 1948, mais de vinte anos após grande parte do período de que trata Tempo morto, Gilberto Freyre não deixa dúvidas sobre o fato de seu diário ser, efetivamente, uma ‘autobiografia a prestação’... quando escreve a seu amigo José Lins do Rego dizendo: ‘tenho acrescentado várias coisas ao diário sobre V. Está ficando um livro’". Não foram somente esses os acréscimos extemporâneos.

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A verdade ou a candura do diário foi, entretanto, resguardada na matéria memorialística, como nesta página de 1925: "Admito que depois de uma meninice, para o brasileiro, e de uma adolescência também, para um tropical, temperante, comecei em Nova Iorque, depois na Europa, a me entregar a experiências sexuais com mulheres de quase toda espécie com um fervor de quem quisesse recuperar esses tempos perdidos". Anotações, essas, e outras muitas ainda mais desafiadoras, se não escandalizaram o editor José Olympio (que não era homem de se escandalizar por tão pouco), levou-o, entretanto, a sugerir cortes discretos na primeira edição, temendo as previsíveis e inevitáveis repercussões desfavoráveis. É óbvio que Gilberto Freyre, como qualquer outro, estava na idade de grande atividade hormonal, encarada com naturalidade e, não raro, com espírito de humor: "Mas o diabo da mulata resvalou foi para meu lado, deixando o M. B, sob uma grande dor-de-cotovelo. Mas sem dar o braço a torcer, disse-me M. B. ... ‘a sua "Flor do Prado", sabe? tem um mau hálito horrível’".

Assim se divertiam tropicalmente os sociólogos e poetas, os críticos literários como Olívio Montenegro (que, de seu lado, cultivava preferências pessoais) e outros cavalheiros de irrefutável respeitabilidade. Se me arrisquei a identificar algumas iniciais é por pensar que tal recurso contradiz a natureza mesma do diário, documento íntimo em que tais cautelas não se justificam, tanto mais que, no caso, Gilberto Freyre refere, aqui e ali, os nomes verdadeiros. O perigo das iniciais está em que podem se referir a pessoas diferentes, com conseqüências fáceis de imaginar.

Se, no Recife, depois de sua volta, ele passou a freqüentar as chamadas "casas de mulheres" (para nada dizer de encontros eventuais), sua surpresa, na Inglaterra, foi verificar que, prolongando os costumes helênicos através da literatura e da língua, a universiade de Oxford era também uma "casa de homens" ou efebos, sólida tradição dos colégios ingleses (anotação de 1922): "Continuo sob a impressão de que... aqui em Oxford... há alguma coisa de grego, de helênico, de sublimação da amizade em amor: em amor platônico [...]". Ainda: "Em Oxford não são raras as danças de rapazes com rapazes... São danças que às vezes terminam em beijos e abraços.".

Pela literatura, pelo exemplo e pela convivência, ele também teve o seu período de relações homossexuais, provocando, segundo parece, intensa paixão em um jovem britânico. Em anotação de 1925, ele encontra legitimidade em livro hoje esquecido de George Santayana, testemunhando que "a amizade entre jovens lhe parecem florescer de modo particular na Inglaterra, entre a juventude inglesa; e Oxford ou Cambridge: estes dois grandes centros de arte da amizade entre ingleses". Foi na vida inglesa de amigos, lembrava no mesmo ano, "que também aprendi e compreendi algumas intimidades durante meus dias de Oxford, tão curtos e tão intensos [...]." Revelações que, confiadas anos depois a um jornalista brasileiro, causaram algum reboliço na hipócrita República das Letras (que, aliás, nada tem da República de Platão) além de alimentarem a maledicência dos seus inimigos. Naqueles tempos longínquos, ainda era um tópico tabu.

Desafetos espontâneos proliferaram à sua volta quando regressou ao Brasil: "O que sinto é que sou repelido pelo Brasil [...]. É incrível o número de artigos e artiguetes aparecidos nestes poucos meses contra mim; e a insistência de quase todos eles é neste ponto: a de ser eu um estranho, um exótico, um meteco, um desajustado, um estrangeirado" / (notação de 1923). É verdade que ele próprio, com suas flanelas de Londres e suas meias de Oxford (na cidade do Recife!) concorria para propagar a figura de insuportável snob. A hostilidade era tanto maior quanto os despeitados não lhe podiam ignorar a superioridade: "Duvido que alguém aqui leia hoje, de livros sérios na sua especialidade e em literatura e filosofia geral, metade sequer do que eu leio... conversei com eles sobre livros. Estão apenas nos primeiros andares da erudição. E padecem do mal de ser livrescos".

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"Eles" eram os grandes sábios da província, todos autodidatas desejando "atualizar-se", e que, de fato, não podiam tolerar aquele jovem petulante, ele mesmo pouco propenso à tolerância.