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No Brasil, a Questão Racial é, na verdade, a questão Gilberto Freyre, não só interlocutor oculto, como já se disse (Ronaldo Vainfas), mas também interlocutor incontornável, reconferindo atualidade a um livro de 2001, negligenciado pelos especialistas, tendenciosos ou não, além, claro está, do jornalismo cultural (Joaquim Falcão/Rosa Maria Barboza de Araújo, orgs. O imperador das idéias: Gilberto Freyre em questão. Rio: Colégio do Brasil/UniverCidade/Fundação Roberto Marinho/Topbooks).

Ora, se Gilberto Freyre "não é para principiantes", como querem os organizadores, menos ainda será para os primários intelectuais, geralmente confundidos na mesma pessoa com ativistas de agenda própria. Seu problema, observei na introdução à segunda edição de Novo mundo nos trópicos (Topbooks, 2000), "está em que, sendo escritor de extraordinária complexidade intelectual, é com freqüência lido por inteligências pedestres, quase sempre condicionadas pelos lugares-comuns das ideologias vulgares, para nada dizer das insuficientes informações históricas".

Os espíritos simplistas, de pouca flexibilidade mental, não podem compreender, menos ainda aceitar, uma personalidade contraditória e paradoxal como a sua, "a ponto de, sendo heterossexual, revelar-se em experiência homossexual. Além de ser provinciano, se dizia e era cosmopolita. Adepto da rotina, tanto quanto da aventura. Defensor da tradição mas adorando antecipações. Um pensador que se defina como acatólico e inacadêmico. Regionalista e internacional. Capaz de defender com igual ímpeto convergências e divergências. Um autor que se dizia e se orgulhava de ser, até o fim, incompleto como anotara em seu livro Tempo morto e outros tempos" (Joaquim Falcão).

Personalidade oposta, ponto por ponto, à de Florestan Fernandes e seus discípulos, deliberadamente empenhados em destruí-lo enquanto pensador e cientista social. Tratava-se, ou de silenciar a seu respeito ou de amesquinhá-lo com referências derrogatórias, como Fernando Henrique Cardoso, que qualificou Casa grande & senzala de "literatura", ou Antônio Cândido, que o descreveu como interessado apenas nas "goiabadas das tias" e nos "babados da prima Fulana", tudo isso chegando até á desonestidade intelectual pura e simples, a exemplo de Otávio Ianni que, com uma citação truncada, apresentou-o como racista num trecho que dizia exatamente o contrário (cf., neste volume, Carlos Guilherme Mota. "A universidade brasileira e o pensamento de Gilberto Freyre").

Sabe-se que a USP é endogâmica (e não só no departamento das Ciências Sociais), no que, bem entendido, vai uma boa dose de vaidade paroquial: "Afinal, não precisamos ler as obras dos membros de nossa capelinha, pois sabemos que serão livros geniais, e, ainda com mais razão, estamos dispensados de estudar os volumes escritos por adeptos de outros cenáculos, pois sabemos que serão livros destituídos de qualquer interesse" (João César de Castro Rocha. "Notas para uma futura pesquisa: Gilberto Freyre e a Escola Paulista").

Carlos Guilherme Mota, é compreensível, apresenta essas polêmicas como meras e honestas divergências de natureza científica, "dois projetos distintos do Brasil. Se conseguirmos enxergá-los de modo positivo, mas contrastando-os, diremos que um subverteu a história dos heróis de raça branca do IHGB; o outro, a visão idilizada de um Brasil tropical, mestiço, democrático por natureza... Um surgiu na antiga cidade colonial do Recife [...] o outro, em São Paulo, no principal pólo do novo capitalismo industrial [...] Ambos com vastíssima obra, instauradores – cada um a seu modo – de uma visão interdisciplinar e de uma teoria da história". Percebe-se que a USP deseja penitenciar-se dos seus excessos polêmicos, compreendendo, afinal, que os contrários mais se completam dos que reciprocamente se excluem. O que, tudo bem considerado, é ainda uma lição de Gilberto Freyre: "se soubermos lê-los juntos, sem confundi-los mas também sem desqualificar um em nome do outro" (Gabriel Cohn).

Tampouco podemos ignorar o que tiveram de rivalidade e luta pelo poder. Nas palavras de Evaldo Cabral de Melo, "a trilogia gilbertiana ficou sendo encarada pela universidade brasileira, sobretudo em São Paulo, como uma sociologia impressionista, pitoresca, história e sentimental, que, por conseguinte, não deveria ser levada muito a sério".Casa grande & senzala tirou o sono, e até a serenidade, da Escola Paulista de Sociologia, falhando, entretanto, no projeto implícito de atribuir a Florestan Fernandes estatura comparável à de Gilberto Freyre.

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