A primeira "utopia" brasileira foi escrita por Pero Vaz de Caminha, dezesseis anos antes do livro clássico de Thomas More que se tornou epónimo da matéria, aliás inspirado, segundo se diz, pela descoberta do Brasil. Em termos bibliográficos, são mais numerosas do que se imaginam as nossas utopias (sem trocadilho...), indo, por exemplo, de Rodolfo Teófilo (O Reino de Kiato, 1922) a Modoaldo Nogueira de Almeida (No país dos Etnadujas, 1932), obscuramente publicado em Curitiba. O conde de Afonso Celso situa-se nessa biblioteca em lugar à parte, por ser o mais famoso, invariavelmente treslido pelos que o lêem em outro contexto mental, sem falar nos que o "leram" de oitiva.

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Por quê me ufano de meu país(1901) pode ser visto como utopia emblemática na euforia de um momento histórico ultranacionalista. Agora, ao contrário, estamos em tempo de distopias, no qual o livro de George Orwell (1984) está em posição simétrica ao de Thomas More. Precedido de três anos pela sátira decapante da União Soviética que é Animal farm (tardiamente parafraseada por Chico Buarque de Holanda com Fazenda Modelo), 1984 é o panfleto da desilusão socialista, distopia em que as utopias se resolvem quando levadas às suas conseqüências lógicas.

Com Não verás país nenhum, Ignácio de Loyola Brandão escreveu a distopia de um mundo sem árvores, que, por efeito do regime militar, juntou-se à distopia de um mundo sem liberdade política, submetido, além disso, à tirania econômica das multinacionais (edição comemorativa, 25 anos. São Paulo: Global, 2007). Vivemos agora em pleno fervor ambientalista, assim ganhando em atualidade, sem nada perder, antes ganhando, enquanto distopia política da vida real. Trata-se do humor negro das utopias, em que se desvenda a impossibilidade da sociedade perfeita, regulada pelos mecanismos que corrigiriam as imperfeições humanas por meio da opressão absoluta e destruição do que se destinava a aperfeiçoar. A utopia é, pois, desde Thomas More, um tema literário no sentido frívolo da palavra: em coordenadas críticas, importa saber até que ponto alcançam, estilística e estruturalmente, a categoria de grande literatura. São livros que, por sua inevitável gratuidade, lemos, em geral, com um interesse distraído, sabendo que, ao contrário da verossimilhança que se espera e exige dos romances propriamente ditos, "tudo aquilo é mentira", isto é, devaneio e jogo imaginativo, sem compromisso com a realidade ou com o realismo, sem o empenho que justifica a literatura em geral e, por paradoxo, imprescindível, antes de mais nada, na literatura utópica.

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O que também ocorre em livros de antecipação como este. Como é bela a natureza primitiva vista dos centros urbanos e com olhares nostálgicos nos confortos da civilização industrial! Mas, será mesmo? Aos horrores de um mundo sem árvores, dominado pela fúria destruidora do homem, corresponderiam os horrores de um mundo sem o homem, dominado pela fúria destruidora da natureza. Suponha-se que por qualquer fenômeno misterioso a humanidade desaparecesse, transformando a Terra em paraíso ecológico (Alan Weisman, Homo disparatus). A vegetação descontrolada passaria a destruir cidades e edifícios, pouco a pouco invadidos pela força irresistível das raízes emergentes e trepadeiras sufocantes, sem falar nas inundações catastróficas. A floresta dominaria os territórios urbanos, de volta ao paraíso ecológico primitivo.

Deixando de lado essas previsões apocalípticas, seria ótimo viver conforme as leis da natureza... nos fins de semana, libertos dos constrangimentos coletivos. Pode-se prever que, mergulhado na vida "natural" e sendo o que é, o homem não tardaria a sentir a nostalgia da civilização, reiniciando o processo histórico que, na fase final, reconduziria à nostalgia dos paraísos perdidos. A verdade é que as catástrofes anunciadas pelas cassandras dos nossos dias não chegam a convencer, pela simples razão de que propõem, ao mesmo tempo, a maneira de evitá-las. A própria consciência ecológica saberá evitar esses extremos, mesmo porque eles iriam contra os presumíveis interesses das entidades tenebrosas que os teriam produzido. Em outras palavras e segundo o sempre canônico Karl Marx, o homem só se propõe os problemas que é capaz de resolver.

A verdade irrecusável é que, com todas as suas imperfeições e por absurdo que pareça, o que se chama de "sociedade civilizada" é o que de mais perfeito foi conseguido através dos séculos para implantar, na realidade, as utopias imaginárias que são um dos seus subprodutos mais característicos. Os exercícios semânticos sobre o que é e o que não é "civilização" são apenas jogos gratuitos, superficiais e pouco realistas. Antes de sorrir com desdém dessa conclusão panglossiana, convém atentar para a lógica profunda do Dr. Pangloss: ele não disse que este é o melhor dos mundos, disse que é o melhor dos mundos possíveis.